domingo, 31 de agosto de 2014

CRÔNICA DE CONSUMO | A lâmpada queimada da poesia




Um dia de crônica não faz mal a ninguém, caminhar pelas ruas, flanar um pouco além da pura vertigem da imaginação, arriscando-se a viver uma outra experiência que não a sua, espécie de estadia não estando, sentindo com todo o espírito como seria o mundo se por ali e naquele momento não se estivesse nele. Claro que isto parte sempre de uma presunção, considerando pertinente minha estadia no mundo. Não há outra: o homem já vem de fábrica com essa débil arrogância. E o termo não é incorreto uma vez que tudo foi transformado em produto. Em um mundo habitado por consumidores, não há distinção mais entre compradores e vendedores, porque todos atuam, ou melhor, sofrem a atuação do mercado, enfim: o que nos diferencia é um dado meramente temporal: quando somos compradores e quando somos vendedores. De tal maneira que nossa personalidade está medida pela carga horária de atuação em uma e outra instância. Nem isso: já nos permitimos tal ambiguidade, ou seja, somos e não somos ao mesmo tempo. Isto quer dizer que abolimos este conceito primeiro da individualidade enquanto característica geradora de um ambiente múltiplo em termos de tendências, percepções, interpretações etc.
Pronto. Há que ver detalhes, nada mais. Por exemplo, saber se a amizade pode funcionar como um produto aspiracional. Viver com mais liberdade significa não crer em mais nada, não compartilhar opiniões, radicalizar o status de sua condição solitária no mundo. Apagar todos os rastros de conceitos como os de confiabilidade e discordância explícita. É isto o que está por trás da máscara de uma entrevista com David Shah,[1] o simpático inglês, consultor de tendências que, ao diagnosticar o fim da moda, nos leva a uma indagação: extinto o hábito, extingue-se a cultura em toda sua amplitude? Como então ser teólogo do nada em uma terra de nada? Quais os hábitos de David Shah? O que veste? Com quem se encontra? Em quem confia? Nesta entrevista ele faz uma apologia da “recontextualização”, algo não tão simples como mudar os móveis de posição em uma sala, mas, ao fim, essencialmente isto. As metáforas criam suas ambiguidades, e desgraçadamente anseiam por ambientar-se, e é justamente quando se mostram o que são: desambientadas.
Os poetas brasileiros parecem discípulos de David Shah. Ah, sim, esta seria uma primeira reação de um poeta brasileiro, porque eu também sou poeta e brasileiro. Mas a coisa não se resolve – a favor de ninguém – assim tão facilmente. Até porque o dilema não se restringe ao comportamento do poeta brasileiro. Há uma passagem na entrevista do inglês Shah em que ele assevera: “Hoje em dia, a maioria dos produtos se parece e tem basicamente a mesma qualidade, sejam japoneses, coreanos ou britânicos. Para diferenciá-los, é preciso atribuir a eles uma personalidade.” Esta, que é a ótica do consumo, em muito se assemelha a uma ótica não declarada do fazer poético no Brasil. Recordo afirmação que me fez Ademir Demarchi, em uma mesa no Instituto Goethe,[2] no sentido de que os poetas brasileiros haviam atingido uma técnica admirável. Sim, é verdade, dentro dos padrões atuantes, de circulação, aceitos pela crítica – hoje restrita ao âmbito da análise acadêmica –, todos escrevem certinho, com boa sintaxe, pausadamente etc. Careceria então aplicar o método Shah, ou seja, atribuir-lhes uma personalidade? Não precisamente, pois do que se trata, antes de tudo, é da aceitação de que essa poesia tornou-se produto, nada mais. Que é outra sua instância de atuação. A partir daí evocar as tendências do mercado livreiro etc. Não importa, aqui, também seguir a trilha da poesia brasileira em si, tanto quanto o comportamento de nossos intelectuais. Como reagimos diante de crises? Como as aceitamos? Como passamos por cima delas em um exercício de alheamento?
Toda vez que o título de uma matéria na imprensa acusa “Não há mais moda” isto nos leva a pensar em correlatos do tipo “Não há mais orgasmo”, “Não há mais poesia”, quantos mais. Todo dia a imprensa tem que dizer que algo não mais existe, para assim poder reanimá-lo no dia seguinte. Jornalistas não entendem mais de ilusionismo do que poetas, apenas dispõem infinitamente mais de espaço para o exercício de sua perversão. Uma afinidade entre jornalistas e advogados é que o assunto central nunca se restringe a conceitos como verdade e justiça e sim à sua decorrência: o ganho de causa. A manchete é o ganho de causa em se tratando de imprensa. Vivemos em um mundo completamente previsível, onde o telejornal, por exemplo, confirma ácida ambiguidade entre o que relata e o ânimo que nos desperta. Em alguns casos é quase como uma conclama: apesar do mundo que lhes apresentamos, tratem de ter esperança. Mas tudo isto porque temos que seguir vendendo. Eis aí onde David Shah está mais implacavelmente correto: “Você pode ter todas as ideias que quiser – é muito fácil ser criativo. O difícil é começar a produzir o que imaginou e colocar na rua para ver se vende.” Ou seja, tudo se resume a técnicas de venda, uma vez que presumivelmente a condicionante estética já tenha sido resolvida de forma conveniente.
A pergunta mais certeira então – porque tudo é uma questão de alvo – seria: o que estão vendendo os poetas brasileiros? Já em 1997 suspeitava Jair Ferreira dos Santos que “híbrida e superficial na sua natureza, a poesia pós-moderna (ou qualquer outra) caminha, tudo indica, para o irrelevante e o espectral enquanto criação na cultura e produto no mercado”, e lhe dá até um nobre papel, ao dizer que “talvez esteja reservado a ela cumprir o trânsito do cadáver da poesia como instituição para sua ressurreição como hobby, jogo tribal, adereço nas subculturas de gosto”, logo lembrando que “nesse novo status, vai assemelhar-se à filatelia, à numismática”.[3] Nesta mesma ocasião, um outro observador, Dante Lucchesi, comenta que “a sociedade pós-moderna, ao se tornar uma nebulosa de todas as linguagens possíveis, esvazia o poder de significação da linguagem na medida em que a reifica, instrumentalizando-a, tornando-a um mero acessório, do qual um artista, um estilista de moda ou um publicitário pode lançar mão sem qualquer comprometimento, e com fins absolutamente pragmáticos”.[4] Ora, mas com que enorme facilidade nos tornamos todos vítimas de um sistema qualquer! Acrescentemos, portanto, à nossa lista de afirmações caóticas o cataclísmico “Não há mais história”. E sempre me pareceu tão fascinante a sugestão de Barthes de ir de encontro a todas as ideias recebidas… Acaso não deveria o poeta estar no mundo justamente para tanto? Duas décadas antes dos brasileiros referidos, já alertava Elias Canetti que “ninguém será hoje um poeta se não duvidar seriamente de seu direito de sê-lo”, atento que se mostrava à “perversa banalidade” que tomaria posse de nosso estar no mundo.[5]
O dilema maior ainda estava por vir, considerando hoje que a reificação evocada por Lucchesi não mais incide apenas sobre a linguagem e sim sobre o poeta, que não soube a tempo negar a si mesmo, transgredir-se, desfazer-se do culto do eu com que acabou imaginando o único sentido de sua existência. Tornou-se ele a coisa em si, o “adereço nas subculturas de gosto”, o frequentador de festas, eventos etc., onde a poesia nada mais diz. Se acaso se assemelha tal empresa com o que move a filatelia ou a numismática, talvez seja apenas pelo aspecto de colecionista, no caso um colecionador de facetas, de gestos eloquentes a compensar a leitura de versos inócuos, por exemplo. Ou compilador de exercícios de simpatia na articulação estratégica da nova marca com a qual se ocupa: ele mesmo. Daí vale retornar ao Mr. Shah quando dispara que “marcas passam a ser como famílias, dão ao consumidor estabilidade, uma identidade”, enfim, “substituem a Igreja e a família real”. Portanto, a coleção do poeta reporta-se à qualidade acessória de sua mais-valia.
Evidente que já não cabe falar em pós-modernidade, exceto como “recontextualização”, e então temos que observar uma vez mais a ótica do Shah, quando atenta para a importância de “desfazer as barreiras entre as disciplinas como moda, iluminação, roupas esportivas, carros e começar a pensar tudo isso como uma coisa só”. Ora, mas foi exatamente contrária a opção tomada pelo poeta, que se isolou em um acortinado qualquer da linguagem sem ocupar-se de outras estruturas ou disciplinas. Não sei se aqui cabe a distinção que Roland Barthes compreendia entre contrário e inverso – “o contrário destrói, o inverso dialoga e nega” –, mas é interessante acompanhar seu raciocínio: “parece-me que só uma escrita invertida, apresentando ao mesmo tempo a linguagem reta e a sua contestação (digamos, para abreviar: a sua paródia), pode ser revolucionária”.[6] O fato é que o poeta condenou a lógica de mercado, por exemplo, mas não a inverteu. Apenas a repeliu, sem transgredi-la. O que fez com que retornasse veementemente sacramentada pela desarticulação argumentativa de seu ideal contestatário. Nem isto, pois não houve retorno. Deu passo tranquilo a seu curso irrefreável de consumismo, com o qual o poeta passou a se identificar.
Mas, onde o poeta aprende a ser gente? Na transmissão de conhecimentos, técnicas, fascinações, sonhos. Antepor-se ao pragmatismo tem sua dose de valor, considerando que nele a satisfação esgota-se em si mesma. Contudo, há algo no poeta e na linguagem que encarna, que é suscetível de aplicações práticas. O poeta tem que se dispor a trocar a lâmpada queimada da linguagem, por exemplo. E para tanto necessita compreender que ele não é nada se não compartilha mundos, e se não aplica seus conhecimentos no mundo que habita. Ainda podemos falar no termo revolucionário? Dependerá sempre do poeta. Antes de tudo, ele terá que aprender a contestar a si mesmo. Se a partir daí conseguirá renovar processos, enigmas, desejos, bom, já ninguém se arrisca a apregoar nada em tal território queimado por descaso de seus granjeiros.
Embora o poeta tenha se convertido em peça de consumo, a ele não se aplica a mesma avaliação geral de Shah, de que “o gosto pela ostentação está em baixa” e que “estamos voltando à ideia de inteligência como um luxo”. Por vezes o fulgor de espírito é apenas um efeito. A ostentação foi deslocada da linguagem para a figura do poeta, a ponto dos versos terem se resumido a mera lapidação formal, não cabendo aplicar-lhe sentido algum. O poeta sim, este faz sentido, brilha pelo luxo de sua sagacidade, e não propriamente por sua inteligência. Não está em harmonia com o mundo que o cerca, mas, antes se exibe como alguém acima de todos os olhares. É professoral, distante, ao mesmo tempo simpático, com aquele ar patético de grife estabelecida. O poeta é a glória em si, ainda que a glória não o reconheça. Alguém por dentro do nada e por fora de si mesmo. Ah se ao menos fosse alguém por dentro da dúvida! A poesia perdeu a conta do mito, pura e simplesmente porque o poeta uma bela manhã despertou preocupado apenas com o que vestir ou não vestir.
Daí que o negócio das tendências tenha encontrado tanto terreno para evoluir. Não que não existisse. O próprio negócio da criação sempre existiu. De alguma maneira um se contrapunha ao outro. A presença contestatória do artista dava segmento a essa trilha de tensão. Mas quando o “fator celebridade” entra em curso, não há dúvida que o negócio de apólices de seguro se sente reconfortado. O seio de uma atriz, o pé de um atleta, e… o poeta faria seguro de quê? Por vezes, é tão simples um cheque-mate. Já não dispunha do mito, do conhecimento mágico, da integridade, da mínima noção de humanismo, sua linguagem havia sido de todo incorporada por um fantasma, de maneira que a moça, sempre tão simpática, na recepção de propostas de apólices, lhe disse: o senhor não vale nada. O poeta sequer tinha a lembrança do último verso cometido. Como recurso ante a graciosidade da mocinha, ainda tentou: não posso segurar o produto aspiracional que eu sou?
Rimos de tudo isto, porém faltou a paródia. O mito considerado e incorporado, a discussão, o diálogo. Em circunstância alguma temer o ridículo em que se incorreu. A ideia de surpresa e excitação defendida por Shah tem aplicação apenas mercadológica. Ele avança em uma área desguarnecida pelo poeta. É um homem astuto, sagaz, que entende mais de poeta – não de poesia – do que qualquer um de nós. Aposta em nossa constante egoísta, um comodismo tanto de linguagem quanto existencial, e sua ideia de “recontextualização” não vai além de um projeto ambientado na manutenção de seu afazer: “colocar objetos e ideias que você conhece num outro ambiente, para criar surpresa e excitação”. Talvez o princípio da criação poética perambule por aí. Mas ainda estamos tratando de consumo. O que o poeta teria a dizer a este respeito?
No princípio da conversa eu andava por uma rua qualquer, lá no primeiro parágrafo, e foi interessante pensar que a concepção deste artigo nada teve a ver com um filme que vi há poucos dias, The Forgotten (2004), de Joseph Ruben, onde havia uma reflexão aparente, sobre a conexão emocional entre pais e filhos, mas que por trás da trama algo que me pareceu mais substancioso se erigia: todo conhecimento se anula em si se não pode ser compartilhado. Andei caminhando por aquela mesma rua, imaginando mil formas de estar nela. É o que tenho feito a cada verso, a cada passo de meu viver. Onde estão a “Igreja e a família real” que perdemos, no dizer de Shah? Nem disto sabemos dar conta. Para que diabos estão no mundo os poetas? Para escrever os versos mais belos esta noite? Ora, mas já não foram escritos? O poeta quer ainda mais beleza? Pois que trate de viver. Que trate de arrancar de si a beleza suprema de existir, contra todas as marcas de luxo e todo o discurso pueril dos consultores de comportamento. Tornem-se, portanto, imprevisíveis.
Abraxas 






[1] “Não há mais moda”, entrevista conduzida por Luciana Stein. Época # 336, São Paulo, 25/10/2004.
[2] Ciclo de palestras e debates: “Além do mercado: Literatura/As revistas literárias”. Instituto Goethe. São Paulo, SP. Outubro de 2001.
[3] “O corpo despedaçado de Orfeu”. Revista Poesia Sempre # 8. Rio de Janeiro. Junho de 1997.
[4] “Poéticas do pós-moderno”. Revista Poesia Sempre # 8. Rio de Janeiro. Junho de 1997.
[5] “O ofício do poeta” (discurso proferido em Munique, em 1976).
[6] “Sobre O sistema da moda e a análise estrutural das narrativas”. Entrevista a Raymond Bellour. Les Lettres Françaises. Paris. Março de 1967.

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