quinta-feira, 9 de abril de 2015

RENATA SODRÉ COSTA LEITE | Uma conversa com Floriano Martins


RSCL | Eu queria saber como começou esta sua conexão com a escrita e com a arte. Não de influências, leituras e tal, mas em que momento você escreveu o seu primeiro texto e para que foi. Você pensava em viver de arte?

FM | Eu sempre pensei em viver como algo incondicional. A ideia de viver de algo jamais me atraiu. Acho que qualquer tipo de sucesso na vida de um criador é uma consequência normal, embora não seja exatamente indispensável. O que não se pode ter, mesmo, é o sucesso como meta, como razão de ser daquilo que se faz. Eu fui copista, antes de ser criador. Copiava com guache capas de livros do José de Alencar em papel cartão, e copiava breves relatos eróticos. Neste caso eu copiava da transbordante e luxuriosa imaginação da adolescência.

RSCL | Quantos anos neste momento?

FM | Não tenho bem certeza, mas imagino que algo em torno de uns 14 anos. Meus pais haviam mudado de casa. Saímos do centro da cidade para um bairro típico de classe média ascendente. Isto mudou a minha convivência e certamente dessa mudança vieram as primeiras tentações da criação.

RSCL | Com 14 anos você já sentia o ímpeto criador? Isso estava claro na época?

FM | Quando morávamos no centro, na casa de meus pais havia uma biblioteca que era ao mesmo tempo ampla e caótica, uma mistura de tudo quanto se possa imaginar em termos de ambiente de leitura. Nesta época também se ouvia uma variedade incrível de música em casa, porque divergiam muito os gostos musicais de pai e mãe. Na escola e sobretudo a partir dos novos amigos que me foram presenteados com a mudança de bairro eu completei o caudal de diversidade dessa minha fonte de formação. Então aos 14 eu já vivia esse fervilhar de espírito que nos torna um criador. Eu podia não saber em que labirinto estava me metendo, mas certamente me sentia bem identificado com ele.

RSCL | Eu sei que seu pai gostava de jazz. Qual a música de que gostava sua mãe?

FM | Minha mãe gostava de um cancioneiro brasileiro mais sentimental, algo em torno de Sílvio Caldas e Orlando Silva. Ela tocava piano na adolescência. No entanto, em grande parte pela doença de meu irmão, ela teve uma vida muito sacrificada. Após a sua morte, eu acho que ela não conseguiu retornar de seu mundo de ausência de tudo. Coincidiu com a minha entrada na adolescência, minhas primeiras andanças por outros ares e logo em seguida ela morreu.

RSCL | Quantos anos havia de diferença entre vocês? Como ele se chamava?

FM | Seu nome era Marcos Vinicius, quatro anos mais novo do que eu. Teve problemas em decorrência do parto e perdeu por completo sua atividade motora. Isto exigiu de minha mãe dedicação integral, de modo que eu acabei sendo um pouco criado pela avó materna.

RSCL | E como foi esta criação paralela?

FM | Minha mãe representa aquele mistério maior que suponho cada um tenha em sua vida. Segundo me revela uma foto minha diante dela, em meu primeiro ano de vida, era uma mulher dotada de imensa delicadeza e transbordava alegria de viver. Eu convivi muito pouco com ela, tenho fragmentos de memória que se impõem dentro do possível. Foi uma relação interditada. Não me interessa falar em fatalidade. Esta sempre soa como um infortúnio garantido, o que é ridículo. A vida de uma pessoa está repleta de um conjunto tão variado de assonâncias e dissonâncias que é impossível prever o desdobramento até mesmo de um sorriso. Os acertos ocasionais, com ares de misticismo de quermesse, são fagulhas de uma crendice vulgar, mais do que evidências de alguma conexão entre dois pontos. De qualquer modo, eu tive uma infância repleta de incômodos inexplicáveis, todos da ordem do espaço por habitar, até hoje não sei diferir certos escassos momentos de memória se tiveram por cenário a casa de minha avó ou de meus pais. Além da curiosidade de que não tenho uma única lembrança do caminho percorrido de uma casa à outra distavam entre si umas seis quadras , se o fazia a pé ou de carro. Sequer recordo a frente dessas casas. Em uma novela que escrevi eu identifiquei na biblioteca existente na casa dos pais o portal secreto que me conduzia à casa da avó. Uma espécie de moto perpétuo de um rito de passagem. Eu ia e vinha, de um ponto a outro, ainda sem dar por conta do que viria a ser.

RSCL | Eu gostaria que me dissesse algo sobre essa ponte energética entre seu irmão e sua avó.

FM | Eu já cheguei a pensar que meu irmão sequer tenha existido. A fotografia não é uma prova da realidade. A memória menos ainda. Existir é a incógnita de uma equação cujas duas variáveis se chamam resistir e desistir. Que não caiba dúvida quanto à fatalidade do personagem que cada um de nós representa na vida, não sei. Acho que a formulação está errada, dado que sempre que não coincide com o estabelecido crucificamos o pensador e não o pensamento. Eu me sinto impregnado de meu irmão e de minha avó, porque eles de algum modo representaram o papel de pai e mãe, mesclando as impossibilidades de cada função. Já sei, é como salpicar estrelas em um céu nublado. Mas não é fácil acordar diariamente sem as suas referências mais primárias. Eu fui acordando assim, durante pelo menos a primeira década de vida, eu tive que tornar o mundo disciplinado por uma magia lúdica. A intuição talvez meu sentido de resistência foi redefinindo os parâmetros de minha relação com o mundo.

RSCL | Me deu vertigem ao incorporar as suas falas, vertigem em estar em seu lugar, em ser você…

FM | …Um arrepio na alma? (risos) Eu já tive isto várias vezes. Há um momento em que a gente se ilude, achando que domina essa volúpia, esse transbordamento. A vertigem melhora quando incorporamos mais elementos a um acervo de técnicas ou quando aprendemos a lidar com a ansiedade. Houve uma época em que eu me dizia que havia algo de estratégico em tudo isto: eu lidava com tantas coisas, atirava para tantos lados, criava tantas perspectivas de trabalho, que era impossível sentir o baque das inevitáveis respostas negativas. De algum modo deu certo, pois jamais tive crise de angústia ou identidade diante das recusas de produção e/ou promoção de minha criação.

RSCL | Mas havia uma base, um ponto em que alguma referência literária lhe desperta e então você percebe que seu caminho era o de um escritor, de um poeta.

FM | A vida é brincalhona e se esconde nesses intervalos em que não se deixa sequer entrever. Creio que muito de nossas referências descobrimos ao acaso. Recordo que ali pelos 16 anos reuni uns primeiros poemas e um amigo me levou à mesa de um decano destacado de nossa poesia. Ao ler aquelas não mais do que umas 20 páginas me falou de O guardador de rebanhos, do Alberto Caeiro. Eu fiquei caladinho, passando a impressão de ser tímido, porque jamais havia lido Fernando Pessoa. A minha infância foi marcada pela leitura de José de Alencar, Dostoievski,  Shakespeare e Milton. O poeta cearense que leu meus poemas se chama Francisco Carvalho, de quem me aproximei muito posteriormente, mas até hoje acho que ele foi não propriamente generoso, mas sim astuto, ao me indicar um caminho. Sabia que eu sairia daquele nosso encontro à procura de todos os livros de Pessoa. De qualquer modo, permaneceu uma inquietude: como posso sofrer a influência de quem jamais li? Um dia compreendi que a razão disto tem menos a ver com o ambiente limitado de quem se dedica a identificar influências do que com o fato de que a vida se encontra definida por um vultoso e diverso traço de afinidades com o que nos é visível ou invisível, não importa. Aos poucos fui aprendendo que as mínimas experiências de vida são postas na panela da criação como ingredientes que sabem ser tão indispensáveis ao prato final quanto os grãos de conhecimento, as pedras de referência, o diapasão, as hortaliças do mistério, os truques da memória.

RSCL | Mas algo o perturbava de um modo que até aqui me passa a impressão de que em seu momento você não sabia identificar.

FM | É verdade. Fui apanhado por algo maior do que eu, naquele instante, dava conta ao menos de entender. Não se trata de destino, de fatalidade. Creio que é uma espécie de disposição para o crime, de reciprocidade de sinais entre causa e efeito. De algum modo eu estava ali prontinho para ser aquele menino que não se encaixava em parte alguma de sua vida. Eu vivia aquele momento em que uma janela não significa o espaço por onde algo entra, mas sim a chance de escapar. E por vários anos eu tratei de escapar e escapar e escapar… Demorou até eu compreender que a janela poderia funcionar de outro modo. Eu me excedi em ser fugitivo de muitas coisas em minha vida.

RSCL | Eu queria retornar à sua família, os seus pontos de fuga, se assim os podemos chamar, são referidos como umas zonas incômodas que necessitavam ajuste ou simplesmente exclusão de um mapa existencial. Como você distinguia o papel que ocupavam aí o pai, a mãe, a avó, o irmão, quem mais?

FM | Naquele momento eu queria apenas ir para o mais longe possível. O único que consegui foi abafar a atuação externa de um espectro que seguiu pulsando. Os tempos se deram em uma cascata de vertigens. Havia uma religiosidade informal na família, disfarçada pela aceitação tácita do tema. Eu fui semanalmente levado a duas igrejas por minha avó. A minha memória se atém às quermesses de uma - ela quase sempre arrematava um frango assado envolto em celofane azul -, incluindo seu trágico incêndio. Então passamos à outra igreja, para mim sem muito atrativo. Recordo que ela recebeu ocasionalmente a visita de um bispo, e que tive que beijar-lhe o anel. Esta cena de algum modo redigiu em meu espírito uma bula antepapal (risos). Meu irmão vivia em seu mundo de ausência perene. Era algo indecifrável para a minha infância. Eu queria tocar-lhe e que reagisse como qualquer pessoa. Eu talvez não entendesse o que aquele silêncio completo significasse. Minha mãe era devotada a ele, era seu sacerdócio. Meu pai era uma figura ausente no ambiente doméstico, aos meus olhos, eu me lembro dele ouvindo sua música, quando surgiu a televisão nos aproximamos muito, fascinados pelo espectro em si, mas lembro bem que ele me levava ao cinema, nas manhãs de domingo eu me deliciava com filmes como os de Carlitos, mas especialmente com O gordo e o magro. Já a avó, ela era a coluna central, o pé direito, quem garantia o fiel de uma família que deu de cara com a morte do pai quando o filho mais velho tinha apenas 18 anos. Lilia - era seu nome - ficou viúva muito jovem, de um comerciante bem sucedido e muito mais velho do que ela. tinha diante de si um desafio enorme. Esta foi a minha avó-mãe.

RSCL | O que acho mais interessante em nossa conversa é que ao responder você não se limita a encerrar o assunto, pelo contrário, está sempre abrindo novas perspectivas. A sua poesia também é assim. Você cria um mundo alucinante em que se misturam sonho e vigília. As drogas alguma vez estiveram presentes em sua vida?

FM | Eu jamais tive problema moral com as drogas. Meu dilema com a maconha é que ela me deixava letárgico. Eu precisava calibrar a voltagem de meus sentidos e a maconha me deixava preguiçoso. Caso eu cheirasse cocaína, o efeito seria inverso e igualmente danoso. O álcool permitia então concentrar e equilibrar a energia necessária à criação. O poeta Enrique Molina, que também pintava, disse que uma distinção entre ambas - a poesia e a pintura - é que o pintor, ao contrário do poeta, pode pintar o dia inteiro. A energia acumulada em função da criação do poema se esvai de um jato, e nos deixa momentaneamente vazios. Eu tinha muita dificuldade em me concentrar, de modo que houve uma época em que eu necessitava de uma ajuda neste sentido, o de acumular em meu íntimo a soma dos seis sentidos, a carga total de sua apreensão do mundo.

RSCL | De qualquer modo, é muito difícil ter acesso ao frasco de sua essência. Talvez ele se esconda por trás dessas prateleiras tão múltiplas que vemos ao adentrar a sua oficina de criação. Quem, por exemplo, é a mulher que fala em você?

FM | Não chega a ser um truque, não há intencionalidade nisto. Tocaste bem a escala mais alta de meus sentidos, não a mulher, propriamente, mas o que está por trás do feminino e que nos escapa, ao homem e à mulher, de um modo desastroso. Um dia alguém me disse que não há como fugir de uma coisa na vida: sempre, em algum momento, acabamos por precisar irremediavelmente do outro. E me disse como se aí radicasse alguma tragédia. Mas esta é a maravilha da vida. A mulher que fala em mim, e não através de mim, é a voz de uma compreensão desse falseamento da essência do ser. Não se trata de uma evocação, seria uma visão simplória e marcada por certo machismo. Tampouco é uma encarnação, porque não há transferência de mirador, eu não empresto meu olhar à mulher. O que me atrai é esta confiança em uma irmanação de sentidos, uma alquimia da percepção de que o mundo não se dá em isolado senão como mercado ou usufruto religioso.A mulher que fala em mim é a única que tem acesso a esse frasco de essências, assim mesmo, no plural, sem truques, insisto. Eu não tenho interesse no criador como um intelectual. São dois planos distintos, que se encontram como um acidente geográfico. Uma vez publiquei um livro de ensaios chamado A inocência de pensar e uma resenha, após elogiar o livro, disse ser inaceitável que o pensamento fosse inocente. O mundo acadêmico está tão habituado a justificar ou contradizer um pensamento já existente que por vezes esquece o frasco de essência do mesmo. Isto nos leva a Goya e sua entranhável compreensão de que "os sonhos da razão produzem monstros".

RSCL | Às vezes eu acho que você é um pensador que, ao procurar algo para se expressar, encontrou a poesia por acidente.

FM | É uma perspectiva fascinante. Tenho por autores que sempre me inquietaram a mesma impressão, independente de serem poetas ou não. Penso em Milan Kundera, Francis Bacon, Duke Ellington, Jorge Luis Borges, Clarice Lispector, Keith Jarrett… Impossível estar com eles sem entender o quanto há de expressão, digamos, filosófica em sua criação. Ao mesmo tempo, dá-nos uma sensação de vazio o que se exibe como produto da arte contemporânea, justamente por esta ausência de um pensamento. Houve um momento talvez pior, em que essa figura do pensador era entendida como um libelo ideológico. Revestir a criação artística de um preceito ideológico ou de um roteiro de entretenimento, acaba por fazer com que o monstro criado se volte contra seu fabricante e cuspa em nós, como o faz a arte em nossos dias, as cinzas de sua angústia. O século XXI se encontra em uma espécie de sinuca de bico, ainda sem aceitar o fato de que os dilemas de sua engrenagem (não importa se na religião, na ciência, na arte) são frutos não do acaso, mas sim de desvios de jogo, ou mais claramente: são resultados da prevaricação da religião, da ciência, da arte, em relação ao mercado.

RSCL | Criação e pensamento se irmanam…

FM | Este é o ponto. Perdemos a ideia de que o criador é parte do mundo. Estou lendo a correspondência ativa do García Lorca a diversos amigos, escritores, editores, diretores de teatro, ele sempre a manifestar preocupações em relação à presença de sua arte em seu tempo. Vivemos em uma época em que a correspondência - em todos os sentidos, não apenas na troca de cartas - se converteu em algo dispensável ou então marcado por um carteado de troca de interesses. O homem então teria criado um alto padrão tecnológico de comunicação para não comunicar-se mais consigo mesmo e o outro que o definiria em essência? O que chamamos hoje de comunicação é uma imposição de valores e não uma troca de percepções do mundo. Este é o tablado em que viemos dar, onde quanto mais perto mais longe. O homem evita reconhecer-se em si mesmo. Não importa a extensão da tragédia humana. 




Renata Sodré Costa Leite é psicóloga e reside em São Paulo. Esta entrevista foi realizada através do chat do Gmail, nos primeiros dias de abril de 2015. Desenho de FM realizado por Adriel Contieri. Reproduzimos ainda capa do livro A vida inesperada, sugerindo ao leitor visitar nossa loja virtual: http://abraxasloja.blogspot.com.br/. Contato: renata_costaleite@hotmail.com.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

OLEG ALMEIDA | A maneira de estar no mundo de Floriano Martins


Conheço Floriano Martins há vários anos. Já li seus poemas e sua novela lírica Sobras de Deus; já vi alguns de seus quadros e fotos artísticas; já lancei mão daquelas riquíssimas fontes de informação e prazer estético que representa a Agulha Revista de Cultura, criada e dirigida por ele. “Mas que homem renascentista é esse?” – sempre me perguntei, ao pensar na pasmosa diversidade de seus interesses e áreas de atuação. Dia destes, convidei Floriano a gravarmos uma pequena entrevista, e, simpático e gentil como de praxe, ele aceitou o convite. Dispôs-se, apesar de muito atarefado, a conversar comigo sobre a literatura latino-americana e seu amplo e multidimensional espaço nela. [OA]

Oleg Almeida: Qualquer pessoa que conhecer seu perfil, fica admirada, igual a mim, com a envergadura de suas atividades criativas. Daí a minha pergunta inicial. Quem é Floriano Martins em primeiro lugar: estudioso de letras hispânicas e tradutor; ensaísta e crítico literário; artista plástico; performer e promotor de eventos culturais; jornalista e editor? Ou poderíamos caracterizá-lo apenas com a antológica frase de Carlos Drummond: Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?


Floriano Martins: Não resta dúvida que haverá sempre o poeta por detrás, com essa mescla de paixão e curiosidade por tudo. Posso dizer que tive dois mestres em um tipo singular de aventura alquímica, penso aqui em William Blake e Ludwig Zeller, pois em ambos gravuras (Blake) e colagens (Zeller) funcionam como extensão do poema. Tardou muito até a consciência, porém a intuição apontava na direção de que a linguagem a ser visitada, identificada, modificada, reajustada, era o poema. De igual modo, nas demais áreas – ensaio, tradução, edição, pesquisa – cada passo é dado em nome da poesia. É o apetite do poeta que devora o mundo para recriá-lo.
 
OA: Então lhe faço uma das minhas perguntas tradicionais. A que momento remonta sua decisão de ser escritor e, notadamente, poeta: à infância ou a uma idade mais madura? E essa decisão surgiu de repente, como um daqueles raios que antecipam o aguaceiro, ou levou muito tempo para se cristalizar?

FM: O instinto sempre tratou de atropelar a razão. Minha infância foi no centro de Fortaleza e o futebol era a grande pedra de toque da meninada da rua. Como eu preferia os livros da biblioteca de meu pai à bola, de algum modo ali já estava a primeira pista. No entanto, eu também jogava, embora pessimamente. E adorava tênis de mesa e natação, ao mesmo tempo em que montava com amigos uma espécie de palco improvisado para dublagens, um arremedo de teatro no quintal de casa, onde o ingresso era a cadeira, ou seja, cada um que levasse seu acento. Também era deliciosamente atraído pelo cinema e o circo – recordo cada momento que passei nessas arenas com meu pai – e a chegada da televisão foi algo inesquecível, em especial pelo Gato Félix. A síntese de tudo isto é o que me define até hoje: uma alegria de viver. Cada fragmento da existência possui um sabor relevante para mim. A essência sempre esteve nos detalhes.

OA: Você poderia citar alguns autores e obras que influenciaram sua verve artística? Afinal de contas, nós todos somos... não digo epígonos, mas, com certeza, alunos de alguém.

FM: A literatura não gosta de algo que para o mundo plástico é fundamental: a figura do copista. Hoje vejo claramente que meu livro Ruínas do silêncio (1978) é uma espécie de tentativa intuitiva de cópia de Memórias do cárcere, do Graciliano Ramos. De algum modo também fui copista de textos de Khalil Gibrán e José de Alencar. Na biblioteca de meu pai havia apenas dois livros de poesia: os sonetos de Shakespeare e o Paraíso perdido de Milton. A narrativa e os comics – a rigor, as adaptações de clássicos da literatura para a linguagem dos comics – eram a minha paixão transbordante, de modo que somente muito depois é que descobri a importância que Milton e Shakespeare (não os sonetos, mas sim as tragédias) tiveram em minha formação. Quando se conversa com um escritor, em geral se acredita que suas influências sejam literárias. Eu não saberia separar a importância que tiveram em minha vida um livro como Crime e castigo (Dostoievski) e o circo Tihany; o frenesi da imagem televisiva do Gato Félix (seu humor silencioso, sua graça sem palavras) e os romances de José de Alencar (em especial O tronco do Ipê e Til, embora recorde aqui que cheguei a copiar, em guache, a capa de O sertanejo, porque houve um momento em que me atraía copiar ou recortar figuras); as aventuras de livros como O último dos moicanos (James Fenimore Cooper) e O conde de Monte Cristo (Alexandre Dumas), e as sessões matinais aos sábados no Cine Art, com meu pai, onde nos divertíamos, em especial com Stan Laurel & Oliver Hardy, e Charles Chaplin… Não me esquivo à tua pergunta, mas a verdade é que eu fui incorporando ao poema detalhes retirados de toda essa maravilha que por vezes significa a vida de alguém: uma frase de humor, a dinâmica de um desenho, um esgar, a delícia de um seio planejando escapar do vestido, o modo de descrever uma cena, o meu poema foi aos poucos montando seu teatro. As leituras fundamentam a escrita, técnica, estilo, porém a vida dá o tempero final.

OA: Qual é o papel do surrealismo em sua vida? Você se considera surrealista? Se não, a que vertente literária relacionaria seu estilo?

FM: Não, não pertenço a nenhuma vertente literária. E o Surrealismo não se limita a uma vertente literária. Declarar-se surrealista mal iniciado o século XXI pode soar anacrônico, um século que se desgasta em fascínio tecnológico. Eu não me filiei ao Surrealismo, propriamente – embora tenha integrado um grupo surrealista em São Paulo –, mas sim descobri nele uma identificação que tinha já seus traços desde minha infância. Eu creio que o Surrealismo deu um cheque-mate à própria noção de filiação, mesmo em desacordo, em alguns momentos, com as ideias de Breton. É bastante iluminador ler a série das entrevistas radiofônicas que Breton deu a André Parinaud. As duas portas essenciais do Surrealismo se chamam Sade e Lautréamont. Aos 14 anos fui visitado por uma edição portuguesa – eu não tinha a menor ideia de sua raridade e clandestinidade – de 120 dias de Sodoma. Este livro me fez somar tudo o que havia se passado comigo até então, incluindo leituras, e foi o catalisador de certa e valiosa perda da inocência. Graças a ele ganhei uma sugestiva consciência de muitos aspectos de minha vida. Até onde me lembro, mesmo já diante da obra de um Salvador Dalí, eu não tinha conhecimento do Surrealismo. A poesia surrealista veio aos poucos, em parte através de Murilo Mendes, Paul Éluard e o García Lorca de O poeta em Nova York. Leituras avulsas. Passo a me interessar pelo Surrealismo muito tempo depois, quando descubro o abismo existente na literatura brasileira em relação à América Hispânica. Um amigo me presenteou a obra completa do peruano César Vallejo, volume cuja introdução mencionava alguns poetas que me eram completamente desconhecidos. O autor desse estudo era o também peruano Américo Ferrari, a quem um dia acabei entrevistando. A minha ignorância foi a chave. Tratei de buscar livros e contatos com uma irrefreável fome. Algumas pessoas foram fundamentais neste primeiro momento: os chilenos Pedro Lastra e Ludwig Zeller, o venezuelano Eugenio Montejo, o espanhol Jorge Rodríguez Padrón, dentre outros, foram a minha generosa estação multiplicadora. Ainda não havia Internet, então a correspondência exigia uma medida de obstinação hoje impensável. Aos poucos fui compreendendo que o Surrealismo se destacava nessa costura de fios estéticos com que eu ia mapeando a banda hispânica de nosso continente. Tive a sorte de encontrar com vida a surrealistas como o chileno Enrique Gómez-Correa e o argentino Francisco Madariaga, entrevistando-os. Então o Surrealismo foi se revelando em outra dimensão – essa que Madariaga considerava mais uma boda do que uma ruptura –, de modo que o convívio com seus meandros me levou a verificar e historiar a ambiguidade com que o mesmo se deu na América. Repriso esses detalhes para que entendas que o Surrealismo não entra em minha vida como uma paixão estética, digamos, mas antes como a necessidade de investigar o silêncio de que padecia (padece ainda) na cultura brasileira.

OA: Apercebem-se, em sua novela Sobras de Deus, nítidos traços de um extenso poema em prosa, algo que me faz lembrar os belíssimos textos de Baudelaire, Turguênev, Lautréamont. Você acredita na síntese das artes, ou seja, nos gêneros híbridos dentro do processo de escrita e nos que transcendem este processo, como a poesia visual? Existe, nesse contexto, certa ligação entre as suas veias de escritor e artista plástico?

FM: Eu não entendo muito a obsessão das classificações, sempre me parece algo indicativo de uma pobreza de espírito. Isto de “poesia visual”, por exemplo. É algo essencialmente vazio de significado. A imagem poética apresentada na forma de uma metáfora é visual. A descrição de uma cena, em um simples comentário em um filme policial, pode ser tanto visual quanto poética. O mundo permanece o mesmo, representado pelo que aparenta ser e o que poderia ser. O mesmo teatro de sempre, o mesmo palco de imagens transbordantes. Resta saber como o homem – em nosso caso particular, o artista – se comporta diante de seu próprio mundo. Eu não sou artista plástico. Durante certo tempo lidei com a colagem e agora me fascina tanto a fotografia como sua utilização na mescla com o desenho na composição do que se chama de novela gráfica. Certamente que acredito na síntese das artes, embora sejam perceptíveis e atrativas as linhas de horizonte que sugerem um ambiente próprio para cada uma delas. Sobras de Deus é uma novela autobiográfica. A mescla de gêneros é natural, porque o meu poema se enriqueceu tanto com diversas leituras – aqui incluindo as crônicas policiais, o cinema épico, as fotonovelas pornográficas – que me fascina deslocar caracteres de um ambiente para outro, compondo uma partitura que seja uma espécie de fusão de notações distintas de ritmos e cores. Sobras de Deus, neste sentido, é poema, é teatro, é cinema.

OA: Sendo um reconhecido especialista em letras ibero-americanas, como você avaliaria, de modo geral, o estado presente da poesia nos países de expressão espanhola? Há quem fale, em nossa época da desumanização tecnológica, no iminente colapso do gênero. Tal previsão é correta ou não?

FM: Quanta mistura de tema! Eu não creio que poderia aqui, em uma simples resposta à tua carinhosa entrevista, abordar a diversidade das “letras ibero-americanas” – aí incluindo o Brasil. Veja bem, acabo de regressar de um encontro de poetas na Nicarágua. Ali estavam mais de 100 poetas de uns 50 países. Matemática fácil: dois poetas por país. Quase nenhuma poesia. Evidente que eventos culturais são eventos políticos montados de acordo com as possibilidades, que se definem pelas relações de sua organização com mecanismos diplomáticos. Sempre que mencionas a poesia eu penso que estás em referência ao poema. O poema tem por trás de si o poeta. O poeta, por vezes, em um mundo de expressão caótica como o nosso, sofre um golpe curioso: o de não corresponder à exigência de defesa de sua estética em outro formato que não o escrito. Temos aí um quesito: as formas de apresentação do poema. Poetas leem mal seus poemas, não sabem como se comportar em público, exageram no que chamam de atenção para si, sequer sabem como ajustar um microfone etc. Não se trata de “desumanização tecnológica” ou carência de adaptação, mas antes de uma clara falta de percepção acerca do desenho natural do mundo em que vivemos, cuja maravilha ou deformação é de nossa inteira responsabilidade. Não vamos agora pôr a culpa em Deus pelo estado de decrepitude existencial a que chegamos. Não há colapso de nada. Não tenho senão rejeição a toda leitura catastrófica da realidade. Somos medíocres porque nos tornamos medíocres. Dito isto, observo ainda que estamos em estado pleno de ignorância mútua, no que diz respeito à cultura de nossos países. Somos uns desconhecidos de nós mesmos. Cultura é reflexo de experiência de vida, ela avança de acordo com a diversidade e intensidade com que nos relacionamos com a tradição (não somente a nossa, em isolado) e suas perspectivas de reajuste – intenções, méritos, fracassos etc. A tecnologia não desumaniza o homem. Ela é parte do homem, desde a ponta de flecha, a descoberta do fogo, até os catálogos virtuais de contratação de amantes. A tecnologia é a cara do homem. É curioso observar que toda vez que o homem não consegue encarar seu reflexo diante do espelho ele culpa a tecnologia. Eu adoro uma cerveja gelada e o teclado com que me correspondo com o mundo (graças a ele respondo a esta entrevista). Não importa que recursos utilizamos, o mundo é humano. Se avança ou retroage, segue sendo humano. Suas desgraças e suas conquistas serão sempre humanas. Adolf Hitler e The Beatles não são extraterrestres.

OA: E como se insere o Brasil neste cenário da literatura continental? As tendências que se manifestam aqui são as mesmas de lá, ou o Brasil trilha um caminho particular? O intercâmbio entre as comunidades lusófona e hispano-falante vem dando frutos?


FM: O Brasil, como disse tão bem Tom Jobim, é um país para profissionais. Na semana passada eu deveria fazer uma conferência na Embaixada do Brasil na Nicarágua. Optei por uma conversa informal. Levei comigo uma poeta canadense, pois imaginei que o público carinhosamente agendado pelo adido cultural brasileiro tivesse interesse em conhecer um pouco mais de poesia. O Brasil é um grande ausente de si mesmo pela natureza comportamental de um dilema de origem mal resolvido. Eu não tenho problemas com o Brasil, mas sei identificar os dilemas que o país tem consigo mesmo. Não por seu decantado gigantismo, mas antes por um temor a afirmar-se como uma identidade cultural. É o país da festividade, dos excessos do carnaval, do futebol, do samba, porém se esquece que essas máscaras ocultam, de um lado, um sagaz oportunismo de uma casta que se especializou em dissecar o país, de outro a frouxidão de artistas e intelectuais que não se comprometem com as necessidades essenciais da cultura brasileira. Nenhum governo tem agendado até o momento uma pauta de discussão dos dilemas existenciais de um país em busca de sua fundação como nação. Meu trabalho de aproximação entre as culturas hispano-americanas e brasileiras tem sido mais percebido nos países hispano-americanos. O Brasil, de algum modo, não faz a menor questão de contar com um Floriano Martins. São 14 anos de dedicação à publicação da Agulha Revista de Cultura. Somos mais do que pioneiros – em um país em que a manchete é tudo –, somos a consistência de um diálogo aberto entre culturas. Até onde entendo, esta deveria ser a função prioritária do Ministério da Cultura. Mas onde está o MinC que até hoje sequer enviou um e-mail de agradecimento por uma das quase 100 edições da Agulha Revista de Cultura. Ah lá fora! Sim, a tua pergunta. Viajo sempre, traduzo, organizo edições, há um carinho imenso. Respiremos. Esteticamente o ambiente possui sua delicadeza de percepção. O Brasil tem optado por uma constante recaída em um plano parnasiano, nossa poética é marcada pelo excesso formalista e, em especial, por certa alienação entre o poeta e sua vida. Na América Hispânica há um pouco de tudo, até porque se expôs a mais experiências estéticas do que o Brasil. Aqui ainda somos viciados na figura do herói, a todo instante buscamos um referencial, o que é sinal de que não temos ainda uma cultura consciente de si mesma. Puro caipirismo. Daí o reflexo na política, no futebol, na mídia etc., de um país sempre obcecado pela invenção de um herói – não importa que se chame Neymar ou Joaquim Barbosa.
 
OA: Sabe-se que não é fácil publicar obras líricas, já que, na opinião quase unânime das editoras comerciais, “a poesia não vende”, e o próprio autor nem sempre está em condições de bancar a publicação de seu livro. O que você acha do “custo-benefício” do trabalho poético?

FM: As razões do mercado não são nunca as razões da boa leitura. As razões do ego sequer se aproximam das razões da poesia. Porém mercado e ego juntos são uma dimensão nova para a prevaricação entre como um autor se mostra e como ele é recebido por seu público. Ao contrário do que me dizes, é cada vez mais fácil publicar. Há libretos em excesso. Poesia em carência. Não creio que a ideia do vendável tenha se modificado muito no que diz respeito à poesia. Assim que não entendo nunca de que eventual falha de mercado os poetas reclamem. A poesia jamais foi uma peça de mercado. A tua pergunta sugere uma discussão profissional especificamente no que diz respeito às leis de mercado. Ou seja, se escrevo, publico e não vendo, ops, o que diabos ainda estou fazendo aqui? A arte intrinsecamente é uma contradição social? Ela existe em função de apontar desajustes em um ambiente social? Quando Lautréamont disse que a poesia deveria ser feita por todos, pensava em uma sociedade em que a fluência do humano estivesse em ritmo tão bom que todos seríamos artistas? Em uma sociedade como a brasileira, já respondemos sinceramente a alguma dessas questões?

OA: Finalizando a entrevista, gostaria de lhe fazer outra pergunta habitual. O que é a poesia para você: modo de viver ou compulsão psicológica, estado de espírito ou passatempo favorito, ocupação intermitente ou necessidade imperiosa? 

FM: A ideia do “passatempo favorito” me indigna, porque sei que tem sido assim para a tradição lírica oficial brasileira. Eu não me preocupo por definir minhas atitudes. Sei a que elas correspondem, uma identidade de espírito, minha maneira de estar no mundo. É seguir viagem. Abraxas.


Floriano Martins (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, ensaísta e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura, revista de circulação pela Internet. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Atualmente coordena a coleção “O Começo da Busca” das Edições Nephelibata (Santa Catarina). Organizou algumas mostras especiais dedicadas à literatura brasileira para revistas em países hispano-americanos: “Narradores y poetas de Brasil” (Blanco Móvil, México, 1998), “La poesía brasileña bajo el espejo de la contemporaneidad” (Alforja, México, 2001) e “Poesía brasileña” (Poesía, Venezuela, 2006). Também organizou a mostra “Poesia peruana no século XX” (Poesia Sempre, Brasil, 2008), ao mesmo tempo em que foi corresponsável pelas edições especiais “Poetas y narradores portugueses” (Blanco Móvil, México, 2003), “Surrealismo” (Atalaia Intermundos, Lisboa, 2003) e “Poetas y prosadores venezolanos” (Blanco Móvil, México, 2006). Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Trabalha ainda com fotografia, colagem e design, tendo realizado exposições e capas de livros. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008) e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009) e do Concurso Nacional de Poesia (Venezuela, 2010). Professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Alfonso Peña, Juan Calzadilla, Eduardo Langagne e Pablo Antonio Cuadra. Autor de livros como Tres estudios para un amor loco (poesia, México, 2006), Duas mentiras (poesia, Brasil, 2008), Teatro imposible (poesia, Venezuela, 2008), Sobras de Deus (narrativa, Brasil, 2008), A inocência de Pensar (ensaio, Brasil, 2009), Fuego en las cartas (poesia, Espanha, 2009), Autobiografia de um truque (prosa poética, Brasil, 2010), Delante del fuego (poesía, México, 2010), e Escritura conquistada. Conversaciones con poetas de Latinoamérica (2 tomos, entrevistas, Venezuela, 2010).

Oleg Almeida (Bielorrússia, 1971): poeta e tradutor, sócio da União Brasileira de Escritores (UBE/São Paulo), colaborador das mídias impressas e eletrônicas. Autor dos livros de poesia Memórias dum hiperbóreo (2008) e Quarta-feira de Cinzas e outros poemas (2011) e de numerosas traduções do russo (Diário do subsolo e O jogador de Fiódor Dostoiévski; Pequenas tragédias de Alexandr Púchkin; Canções alexandrinas de Mikhail Kuzmin) e do francês (Pequenos poemas em prosa de Charles Baudelaire; Os cantos de Bilítis de Pierre Louÿs). Mais informações: www.olegalmeida.com.