domingo, 12 de outubro de 2014

SOMOS O QUE BUSCAMOS | Entrevista a Ana Marques Gastão



O poeta moderno é perplexo porque se tornou crítico, para além de ser um artífice da língua. Nem sempre escreve apenas poemas, dir-se-ia, por vezes, também uma figura, cujo estatuto varia. Floriano Martins (Fortaleza, 1957) é essa figura, nome que assina uma obra e que a obra constrói, mais do que o homem que simplesmente a fabrica.
Autodidacta, iconoclasta, desconcertante, resistente, poliédrico, o autor de Alma em Chamas (Letra & Música, 1998) exerce ainda as funções de ensaísta, editor, tradutor, de Lorca a Cabrera Infante. Estudioso da literatura hispano-americana, no domínio poético, especialista do surrealismo, sobretudo na América Latina, dirige, com Claudio Wiiler, a revista Agulha, coordenando o projecto Banda Hispânica.
Floriano Martins é, todavia, sobretudo poeta. Poeta perplexo perante o estremecimento do mundo, em cuja escrita se fundem géneros. Consciente da importância crítica da cultura enquanto compreensão distanciada e, no entanto, acesa, o escritor de Estudos de Pele (Lamparina, 2001) veste a pele da astúcia ensaística no seu caminho de palavras que trata como seres vivos. Sabe que nelas há uma força não domesticada, maldita, privilegiando, no diálogo entre trevas e luz, as relações de vizinhança, próximas ou dissemelhantes, com a arte dos outros. Proclama a máxima surrealista, o autor de Sábias Areias (Mundo Manual, 1991): “Quero que se calem quando deixarem de sentir”, sabendo que a linguagem anuncia o mundo. Pensar o poema significa, pois, procurar que a memória se transcenda num jogo entre imaginação e entendimento. [AMG]

ANA MARQUES GASTÃO Estudos de Pele é o seu mais recente livro de poesia. Pele do corpo, pele da página. Textos do corpo, corpo do texto, da criação. Entre tudo o mais, dir-se-ia também uma obra sobre a escrita, a linguagem, e ainda sobre a memória?

FLORIANO MARTINS Um livro mestiço. Em toda a criação não damos um passo sem a memória e a linguagem. São aspectos intrínsecos, indissociáveis. Quanto à pele, sendo o que nos recobre, pensamos nela apenas em sua exterioridade. Não a vemos como um conjunto de tecidos, e menos ainda suspeitamos do que lhe passa por dentro. Isto porque caímos no ardil de perceber o mundo de forma fragmentada, alheios às infinitas conexões existentes entre os fragmentos. O livro se volta para este conhecimento, a identificação do todo por meio do convívio com as suas partes, a busca dos elos entre elas.

AMG Estamos perante um livro polifónico que actua na reconstrução de um mundo, sendo o seu conteúdo o imaginário poético encontrado entre o real referencial e o discurso do fabuloso, do fantástico, do onírico, até do maldito?

FM O mundo que busca reconstruir é justamente o dessa unidade perdida, porém sem saudosismo de espécie alguma. Neste caso a polifonia é indispensável, bem como a presença desses discursos todos. O imaginário, mesmo em sua conotação de ilusório, é real. Não faço essa distinção entre uma coisa e outra. Somos também aquilo que sonhamos e desejamos. E dentro dessa mescla não caberia esquivar-se do maldito. A perversão nos define, sobretudo nas maneiras menos percebidas como tais. Basta pensar nas fábulas e nas cantigas de roda, por exemplo. É uma estranha relação a que o homem mantém, tão íntima, com as trevas.

AMG Entrelaça na sua obra delírio e lucidez, corpo e espírito. Quando perguntaram a Max Ernst o que pensava de Kant, ele respondeu: “A nudez da mulher é mais sábia do que o ensinamento do filósofo”. Poderia ter tido uma resposta tão desconcertante como esta, ou não?

FM O desconcerto é um dom, sim, porém causa hoje um efeito retórico, no sentido de que há uma hipocrisia reinante que busca nele apenas um divertimento, a figura circense, engraçadinha, previsivelmente “desconcertante”. Era outro o cenário em que agiu o Surrealismo dentro de tuas referências. Equivalências? Teríamos que pensar na maneira violenta como a privacidade tem sido assentada como uma mercadoria. E o que a filosofia e a arte têm feito a respeito.

AMG Referia-me também ao diálogo que encontro na sua obra entre o pensar e o sentir, entre o ensaístico e o poético, tendo em conta essa nudez a que se refere Ernst…

FM São vasos comunicantes que estabelecem uma íntima relação entre arte e vida, desde que não se comportem como se o pensar e o sentir estivessem desligados. Tampouco o faço por puro modismo de quebra de barreira entre gêneros. Há muito empastelamento anódino sob tal artifício.

AMG Pode entender-se Estudos de Pele como um enredo ficcional, viajando entre os diversos géneros literários (poema em verso ou em prosa, drama, ensaio…), em que as vozes das mulheres nos contam como o mundo as abandonou e nos falam da possessão?

FM Foi pensado exatamente assim, no que diz respeito ao primeiro aspecto de tua abordagem, ou seja, um enredo ficcional, não linear, mesclando gêneros e técnicas e mesmo apropriando-se, ainda que raramente, de algumas anônimas sutilezas alheias. Contudo, não se trata de livro atento apenas às “vozes das mulheres”, mas sim essencialmente ligado à expressão do feminino, à sensibilidade – essa metade arrancada de todos nós.

AMG Mas há uma intensidade que se reflecte mais, a seu ver, no mundo feminino?

FM A grande violência advinda deste aspecto se reflete na mulher, sendo ela quem a sofre de maneira mais intensa. O livro dá às personagens femininas uma especial atenção – inclusive porque vem delas uma réstia de sensibilidade que talvez se mantenha exatamente pela consciência do padecimento. Essas mulheres, no entanto, desconhecem a raiz do sofrimento. Diferem, sob este aspecto, das personagens femininas de um livro que está por sair, Duas mentiras, onde notamos a presença não mais da perplexidade diante de tópicos como crime, violência, dor, sujeição, mas sim entonações de sarcasmo, manipulação, escárnio… Se observarmos bem, em Estudos de Pele, as figuras masculinas, anônimas em boa parte do livro, mas identificadas em algumas passagens (Alfredo, D. Leopoldo, o garoto do capítulo “Rastros de um caracol”), são plenamente ativas, enquanto as mulheres representam a parte passiva.

AMG Atravessa este livro toda uma herança da história feminina, na opressão e na astúcia que se lhe juntou. Ou não?

FM Há bem menos sinais da astúcia do que da opressão, eu diria. Os capítulos que abrem (“Sombras raptadas”) e encerram (“Modelos vivos”) o livro reúnem as mesmas personagens bíblicas: Ester, Madalena, Maria, Marta, Raquel, Rute e Sara – isto dá uma falsa ideia de circularidade, intencional, onde embaralho os conceitos de opressão e astúcia, como sugeres. Peguemos um caso, o de Madalena. Na primeira parte a personagem é demasiado ingênua ao mostrar-se por inteiro – a certo momento indaga a Deus: “O que fui, senão tua prisioneira, bastarda e incestuosa, crente pusilânime de que o prazer reanima a fé?” Ela retorna na parte final com uma grande voltagem de astúcia, confundindo-se no poema duas vozes femininas, ou seja, quem é a verdadeira Madalena que ressurge em “Flagrantes da fé” – a que se assemelha à personagem histórica Erzsébet Báthory, a condessa sangrenta tão bem retratada por Alejandra Pizarnik, ou a anônima esposa de Gustavo, que narra a história e deixa escapar que há mais ênfase no olhar de seu marido quando ela o faz cativo? Acho que essencialmente atravessa o livro o componente opressivo, através do qual a astúcia se prepara para o momento seguinte, em que é sugerida como uma decorrência, sem que se faça tão presente quanto a opressão.

AMG Erzsébet Báthory que Valentine Penrose, tão acarinhada pelos surrealistas, tratou de forma esplendorosa no seu livro dedicado à condessa sanguinária, espécie de Gilles de Rais no feminino… De facto, Estudos de Pele tem esse lado do romance negro, essa luminosidade terrífica com aroma a açafrão húmido e a sangue. Ambos tratam o mal com cintilância…

FM A própria Alejandra Pizarnik escreveu seu belíssimo La condesa sangrienta a partir do livro de Valentine Penrose, claro. E tocas aqui em algo que não se percebeu ainda na leitura do livro, sua intimidade com o romance negro, o entrelaçamento entre erótico, místico, criminal, recursos sombrios, as cartas de prisão, a crônica policial descrevendo cenas e estilos de crime, feitiçarias, raptos, confissões, tudo isto que se encontra também em Sade, cuja leitura na adolescência foi fundamental para mim.

AMG Detecta-se, talvez por isso, um erotismo poderoso em Estudos de Pele, como, aliás, na sua restante obra: “Extinta a vida dos sentidos, nada mais nos resta no espírito” como refere Aquinauta que cita no seu Alma em Chamas?

FM Toda escrita é resvaladiça. Nada faz sentido além do escorregadio. O homem está sempre a fugir de si, e há algo de erótico neste jogo de máscaras. Mas o efeito do crime tem inocentado inúmeros assassinos. O erotismo em Estudos de Pele é utilizado de várias maneiras, incluindo a lascívia, um tipo discreto de suborno, o encantamento mágico. Evidente que já em Alma em Chamas Aquinauta compreendia que o sentido extrapola o juízo e o objetivo. Daí que o aproximes tão bem de uma erótica. Está perfeita a tua leitura. Mas recordemos que Aquinauta não se referia a um sentido encontrado, mas antes a um sentido buscado. Eis o que somos, inclusive eroticamente: aquilo que buscamos.

AMG Diria que somos mais aquilo que desejamos do que o que buscamos. Não é esta uma civilização do desejo?

FM Em uma sociedade pautada pela conquista, a concorrência, a ganância etc., não se pode falar em desejo. O próprio termo civilização já não tem mais cabida nas sociedades contemporâneas, mais afeitas à barbárie. A rigor, nem seria correto falar em busca, porque somos induzidos a um sistema de rivalidades.

AMG Há excesso de realidade, de razoabilidade. O poeta procura-se, por isso, fora de si?

FM A crônica policial é o nosso livro sagrado. Se fôssemos hoje tratar de um Novo Testamento ele seria formado por uma recolha de nossa crônica policial. Vivemos em uma sociedade criminal, recheada de seqüestros, subornos, falsos depoimentos, prevaricações, terrorismo, e crimes passionais – sim, ainda se mata por essa falsa ideia de amor. Podemos chamar a isto de excesso de realidade? Os velhos monstros da razão, sim.

AMG E quando o poeta se procura, fá-lo dentro de outras vozes como as deste livro recheado de intertextualidades (da Bíblia à crónica policial)?

FM A intertextualidade, essa, não me interessa como um recurso da modernidade, um exercício de afetação intelectual, mas sim como uma afirmação de diálogo, da busca de cumplicidade com a voz que me é alheia, mas que procuro incorporar não propriamente ao meu discurso, mas antes à minha vida, que é – aceitem ou não – a de todos. Jogo de tal forma com este aspecto da intertextualidade que chego a criar uma personagem fictícia apenas para citá-la. A citação não é apenas transcrição ou intimação judicial. Trata-se também de uma confissão, a de que não me quero sozinho no mundo. Pensada como uma transgressão ou mero recurso técnico, a citação reflete o caráter, como qualquer outra atitude.

AMG Então como relaciona autobiografia com ficção?

FM Como um recurso para pôr em xeque a vida do leitor, que é invariavelmente um prolongamento da escrita. A ficção como um cadinho de realidades e vice-versa. Bem sei que tudo isto se tornou complexo porque a ficção romanesca já de muito foi atropelada pela voracidade da mídia em forjar realidades. Neste caso, o autobiográfico vem à tona como um resgate da essência do ser, embora também possa ser apenas um ardil a mais para a anulação desta mesma essência. Isto requer atenção maior da parte do leitor e responsabilidade ainda maior da parte do escritor.

AMG A escrita como prolongamento de um Eu, ou a vida como prolongamento da escrita? Que vem antes, primeiro?

FM A dúvida impera sempre, a inquietude, o desconforto, a curiosidade, estes são os princípios motores dessa complexa relação entre vida e escrita. A rigor nenhuma das duas personagens se sente menos protagonista que o outro. Tratássemos de um filme – e de certa forma não passa disto – nenhum dos dois ia querer o papel de bandido.

AMG É seu um discurso das origens e da origem do discurso que se materializa numa poética da decifração, à semelhança do seu “pai” Blake?

FM Tradução, premeditação, compreensão, leitura – tudo isto é decifrar as origens. Não faço a menor ideia do que pode motivar as pessoas a escrever nem quero abordar aquela ideia do sujeito que se sente feliz sendo um artista somente quando essa condição coincide com a glória… A toda hora, nos empanturramos de experiências, o encontro casual na rua, um filme, o som de algum objeto que nos remete a uma lembrança, uma frustração, tudo. Para mim, essas sensações todas formam uma grande malha de conexão com o que sou.

AMG Vê-se, então, como?

FM A resposta está sempre na pergunta, naquilo que se indaga. Vejo a mim de muitas maneiras, mas isto se passa com toda a gente. Há a existência comum, vulgar, trivial, cuja origem compartilhamos inconscientemente. William Blake tinha esta percepção, embora acentuadamente sob um aspecto místico. Não foi a minha primeira leitura, mas sim o primeiro impacte dentro deste âmbito de uma polifonia de vozes. Temos que provar do outro para tocar o que somos. Tenho que me misturar ao mundo para identificar-me. Não procuro uma origem comum, mas sim me inteirar do que seja Floriano Martins o suficiente para garantir um diálogo honesto com o outro.

AMG Não deixa de existir um trabalho de colagem em Estudos de Pele, que curiosamente, se alia a uma outra faceta sua, a de artista plástico. Como se fundem palavra e imagem?

FM A exemplo do que se passou com Alma em Chamas (1998), Estudos de Pele teria na capa uma colagem minha, que dava continuidade a um entrelaçamento entre gêneros e técnicas, o que acabou não sendo possível por falta de sensibilidade da editora. Um raro aspecto negativo. O livro está escrito, e isto importa além de sua publicação. Toda a minha geração cresceu sobre o influxo do cinema. E cinema é essencialmente colagem. O cinema põe em xeque uma arte purista, no sentido dela originar-se de uma só matéria. Evidente que pode seguir sendo realizada por alguém em isolado, mas a ideia de fonte, as origens, isto o cinema ajudou a questionar tanto quanto a máxima de Lautréamont de que a poesia deve ser feita por todos. E isto só funciona se cada um de nós fizer de tudo. Se perdermos a ideia estanque das propriedades sem comunicação entre si.

AMG As suas colagens são, de alguma, forma diarísticas, espécie de anotações, memórias, teatro de imagens? São poemas?

FM Sim. São essencialmente poemas, um tipo de caligrama que já não se limita ao arranjo tipográfico. A imagem continua sendo uma representação da escrita. Vivemos em uma sociedade esmagada pela imagem, mas em grande parte essa condição opressiva vem de nossa relação mal digerida com a escrita. A rigor, somos sufocados pela ignorância. Quanto à referência às anotações, é tudo o que fazemos, por mais que esteticamente estabelecido como arte, tudo não passa de anotação.

AMG Há um lado visceral e aparentemente torrencial na sua escrita poética, aliado a um fulgor ensaístico. Ligam-se, portanto, imaginação transformadora, loucura e razão?

FM Entendeste bem a questão, o que prova a menção ao “aparentemente torrencial”. Sei dos riscos de se confundir a intensidade de um discurso com sua entoação verborrágica. Muito do que se tem hoje alardeado como pós-moderno ou neobarroco não passa disto. Não é só a imaginação que é transformadora; também o são a loucura e a razão. E todas podem ser apenas deformadoras.

AMG No fundo, vive dentro dos propósitos da acção surrealista, recusando o naturalismo e a expressão unicamente interpretativa do real?

FM Breton dizia que os naturalistas eram demasiado otimistas. Eu me considero um pessimista produtivo, mas tenho certa rejeição a essa terminologia que resulta ser excludente. De um lado ou de outro. Breton propunha um risco tão intenso, que não dava para deixar de fora quem não o atendesse em sua verticalidade. Nem ele próprio o fez, e o princípio era mesmo outro. É inaceitável a forma grosseira com que se tem buscado reproduzir o real. É um tipo falseado de naturalismo, hoje orquestrado por uma indústria que o anula justamente na maneira como o evidencia.

AMG De alguma forma há um lugar da infância que assalta os seus textos?

FM Nunca estamos longe da infância. Há quem prefira dizer de outra maneira: jamais nos livramos da infância. A psicanálise adora esta nossa má compreensão do assunto. Há todo um capítulo em Estudos de Pele, “Rastros de um caracol”, em que se tem a presença de um garoto às voltas com o que lhe foi determinante para o resto da vida. Mas a todo instante as personagens deste livro estão voltando à infância.

AMG Ou seja, é o mesmo livro que tem vindo a escrever, igualmente oriundo desse lugar do menino, sempre aliando drama e lirismo?

FM Sempre estamos neste embate interminável com nossos fantasmas. Há autores em que a variedade estilística denuncia, mais do que uma voracidade, certa instabilidade emocional. Mas há também o risco de retórica, diluição, nesse repetir-se à exaustão. Interessa-me sobremaneira expressar conjuntamente drama e lirismo porque esta é a nossa existência, não extraímos de nós um ouro puro, mas sim uma pedra mestiça que nos devolve à vida justamente pela mistura.

AMG “Tudo que somos está fora de seu lugar,/ festim de simulações,/ sistema sem princípio”? Por isso escreve?

FM É um conjunto de ações e reações, não simplifiquemos. Por mais que eu tente esclarecer o motivo por que escrevo, haverá sempre algo em mim que escreve por outra razão. Apenas escrevo.

AMG E onde persiste o amor, como questiona um dos seus poemas?

FM Em toda parte, é um dos mais obstinados e crédulos dos sentimentos. Tem resistido a tudo em toda a história da humanidade. Em nome da igreja, da política, sobretudo da dúvida. Creio que mais temos duvidado do amor do que o afirmado. Convertido em veneração, negociação, saudosismo, andou por todas as partes e atualmente é apenas fílmico, embora a crônica policial esteja repleta de crimes passionais. Lendo a poesia que se publica hoje é bem possível algum cronista futuro enunciar que os poetas estavam muito aquém do amor.

AMG Amor, liberdade e poesia lado a lado na definição do amor de Breton citado no seu prefácio a O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia da América Latina (2001), que inverte o título da obra de Octavio Paz, La Búsqueda del Comienzo. Trata-se de uma antologia de poetas acompanhada de um estudo, um historial da prática do Surrealismo na América de Língua Portuguesa e castelhana, incluindo ainda um conjunto de entrevistas. Essa busca de que fala mal começou?

FM Este é um livro isolado se fizermos um mapa editorial brasileiro e buscarmos suas relações com a América Latina. O abismo entre as duas culturas – se definidas apenas do ponto de vista idiomático – constitui já um vício histórico, um tipo de droga legalizada. Eu posso publicar 10 livros iguais a este e nada se altera. O que se passa é que a cultura brasileira não pode propor diálogo com outra cultura enquanto não existir por si mesma, e não existirá enquanto não compreender suas raízes e brigar por elas. Não importa quanta exceção se produza aqui, seguimos colonizáveis. Não nos livramos de tal estigma.

AMG A presença do Surrealismo do Brasil (com pouca penetração, no seu entendimento, por causa da tradição positivista) não só é desconhecida, mas ocultada (e por vezes negada) pela crítica e pelo poder cultural?

FM É a tal relação de intimidade que o Surrealismo propunha entre vida e obra. Isto é um inferno para a intelectualidade brasileira, que jamais viu na criação uma razão de ser. Antes ao menos havia uma reação por conta do catolicismo aqui imperante, mas hoje é apenas ignorância, repetição acrítica de um modelo preconceituoso.

AMG Enquanto estudioso do Surrealismo, tem procurado, de alguma forma, evitar aquilo que chama “falseamento da história”?

FM [risos] Eu tenho cobrado isto a todo instante, inclusive de mim. A memória é subornável. É mais: é uma grande cafetina. A história está nas mãos desta Sra. Agora, não nos esqueçamos que a história tem um relator: o homem.

AMG Considera ter havido negligência brasileira para com a cultura dos seus vizinhos? E em Portugal, cuja poesia tem acompanhado de perto, que fizeram da herança surrealista?

FM Lendo as cartas do António Maria Lisboa se percebe o quanto que ele chamava a atenção para os riscos da ortodoxia. Este sempre foi o grande dilema da recepção do Surrealismo em outras culturas, evitar a tentação de ser mais real que o rei. Os dois nomes fundamentais do Surrealismo em Portugal estão ainda vivos: Mario Cesariny e Cruzeiro Seixas. O desdobramento proposto por ambos, distinto entre eles, foi bastante construtivo e evidente, o que surpreende que um estudioso como Perfecto Cuadrado trate do assunto como um capítulo vencido da história portuguesa.

AMG Molina disse, numa entrevista, que “nenhum poeta pode deixar de querer o Surrealismo”. Entendida como referência histórica, e na acepção de um humanismo poético, a afirmação faz sentido, mas não será excessiva?

FM Mas o que não é excesso no Surrealismo? Considerando os inúmeros exemplos de uma poesia hispano-americana que hoje caiu no ardil de um novo formalismo, como é o caso do neobarroco, que faz esta poesia retroceder aos seus primórdios modernistas – o que equivale, em termos brasileiros, ao parnasianismo –, eu acho que Molina estava correto ao afirmar aquilo, pensando não propriamente em uma receita surrealista, mas sim no espírito de liberdade que permeava o Surrealismo, enfim, que o poeta, qualquer, não seria poeta sem defender aqueles princípios, que em circunstância alguma se pretendiam escolásticos.

AMG A dimensão política da arte tem sido motivo de reflexão sua, bem como tem feito uma crítica feroz à poesia que se tem vindo a praticar no Brasil há algumas décadas. Mais uma vez solitário?

FM É que os poetas acham que dão em árvore ou que compram joguinhos de construção poética em livrarias. Uma gente sobrenatural, talvez. Alienados ou cínicos? É irritante o fato de que ninguém se compromete com nada neste país. Vivemos um estado de letargia da indignação. Engraçado é que, a todo instante, um tolo se auto-proclama a antena da raça. O poeta não faz ideia do quanto é cúmplice do crime que nos deforma.

AMG Poeta, ensaísta, tradutor, editor, jornalista, director com Claudio Willer, da revista Agulha, coordenador do projecto editorial Banda Hispânica… Qual a faceta que impera em todas as suas actividades, a do poeta?

FM Nenhuma dúvida. Tudo isto são decorrências do poeta. Não tenho formação acadêmica. Sou o franco-atirador, o autodidata. Esta postura se reflete em tudo o que faço, onde a versão oficial é a primeira a ser posta em questão, mas em momento algum evidenciando o underground apenas por sua condição marginal.

AMG Como escreveu André Breton, “a poesia faz-se na cama como o amor”? Ou seja, é nesse estado de “beleza convulsiva” que se escreve para “salvar” a vida?

FM Eu não diria salvar, termo já melodramaticamente incorporado por Hollywood. Mas é evidente que a poesia se faz na cama como o amor. Ela se torna presente em nós não apenas no verso, mas na maneira como nos identificamos com cada coisa em nossa vida, uma canção, aquela imagem de repente referida de uma exposição, o amor, caminhar pela rua com um amigo, um sonho, saudade, esta entrevista… Onde a intensidade do que fazes? Brincando com os filhos, pesquisando sobre qualquer tema, abrindo um vinho, recordando a cena marcante de um filme… Por onde a vida se torna convulsiva? A poesia não responde. A poesia é a grande fonte de inquietudes. Trate de viver, não de vivê-la. Ninguém consegue viver a poesia. Mas que delícia que é cada um tratando de viver a si mesmo…



 [2005]

[Entrevista concedida a Ana Marques Gastão. Originalmente publicada no portal Cronópios, São Paulo, 19/04/2005. Integra o livro O hábito do abismo (Entrevistas com Floriano Martins), de Márcio Simões (ARC Edições: Fortaleza, 2013).]





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