domingo, 12 de outubro de 2014

UMA AGULHA NA REDE DA MESTIÇAGEM | Entrevista a José Ángel Leyva



JOSÉ ÁNGEL LEYVA Comencemos por el poeta Floriano Martins, un cosmopolita en su Aldeota, Fortaleza, donde reside para dispararse incesante al mundo de los cibernautas. En esa perspectiva ¿qué significa novedad para Floriano?

FLORIANO MARTINS A novidade é uma colheita, ou seja, há que plantá-la. Mas é também uma colheita do espanto, pois o que mais me atrai nela é sua capacidade de surpreender. Para tanto, é preciso estar conectado ao mundo com todos os sentidos, entregue a essa permuta de alta voltagem do espírito que a vida nos ensina a viver. Curioso é que a mídia, que mais afirma interesse na novidade, esteja sempre amparada no estabelecido. Inclusive o que ali se apresenta como novo é sempre uma diluição, do ponto de vista estético, sempre um retrocesso, uma máscara, uma fraude. Evidente que a viagem pela Internet permite o encontro com inúmeras formas da novidade. Mas há que saber navegar, sempre. Há que saber navegar…

JAL Reconoces en tu escritura poética el embelezo por el discurso surrealista en lo que a la estética se refiere. Muchos poetas influenciados por ese ismo han negado su participación e influencia, incluso el haber pisado alguna vez sus terrenos. Tú no sólo recorres dicho territorio sino que exploras su subsuelo en América Latina. ¿Puede decirse que insistes en cultivarlo? ¿por qué?

FM Incontáveis motivos: as imagens cortantes, vertiginosas, estimulantes; o caráter da escrita; a atenção pelos grandes abismos da realidade; a percepção intensa de um sentido de recusa; a incessante aventura exploratória dos mistérios que definem a existência humana; o diálogo audacioso com os lugares comuns… Evidente que a relação com o Surrealismo não pode se restringir ao ingresso em uma formação grupal. Eu já vivi uma experiência de grupo e ela foi algo desastrosa, porque há filamentos da ortodoxia que se enredam na prática das relações. Mas observemos como certa indeterminação, no que diz respeito à afinidade de alguns poetas e artistas com o surrealismo, esteja ligada mais a um sentido de oportunismo do que propriamente a um questionamento adequado. O que em muitos casos poderia ser uma crítica consistente em relação às falhas eventuais – e sabemos que elas são inúmeras –, acaba por se transformar em um jogo desqualificado de egos indomáveis. A percepção do Surrealismo no continente americano tomou um caminho algo distinto, sobretudo considerando o fato de que a estadia dos franceses (sempre capitaneados por Breton) nos Estados Unidos e no México esteve pautada pela formação de um gueto, uma espécie de colônia europeia, onde o francês era mantido como língua única. Uma contradição com a ideia de Artaud ao considerar o surrealismo como uma “nova espécie de magia”, ou da esperança – que acabou sendo frustrada – de César Moro, de que se tratasse de uma “cita de las tormentas portadoras del rayo y de la lluvia de fuego”.

JAL Empleas la imagen del espejo para indicar la insensatez del hombre ¿Qué ves ven esas criaturas? ¿Su engañosa figura endiosada o su camino inevitable hacia la muerte?

FM O que o espelho reflete de cada um de nós nem sempre está visível em nosso próprio entendimento do ser. Se as relações humanas foram se tornando um quase inquebrantável jogo de aparências, isto se deve ao fato do homem haver tecido um abismo entre imagem e identidade. Para reconhecer a si mesmo é preciso agora deformar espelhos? Mas quem diabos é esta criatura que a todo instante se evita e cobra identidade apenas nos demais da espécie? Estas são leituras clássicas da poesia em todos os tempos. Mas quem garante que o homem em nossos dias esteja interessado em refletir (sobre) sua humanidade? O fato de havê-la perdido, já nos dá a resposta. Por outro lado, o que tem feito a arte – quando o faz seriamente –, senão põe o homem diante de um espelho? Talvez o homem mereça mesmo o estado em que chegou, e não esteja mesmo interessado em quem se preocupe com essa humanidade perdida, cuja relevância jamais percebeu.

JAL ¿Qué le preocupa al poeta Floriano: la muerte o la palabra muerte?

FM Preocupa-me esta separação que tua pergunta sugere, como se acaso uma coisa fosse a experiência de vida e outra a linguagem. Ruína ou pesar, essa entidade é parte de nossa vida no momento mesmo em que a iniciamos. Consciente ou não, está presente em nós. As crianças não têm consciência da morte nem da linguagem. Qual dos dois choques de consciência será mais determinante na vida delas? Não será um único abismo? Os poetas desafiam a morte ou a palavra morte? E por onde se alastra o conceito de morte? Considerando certa primazia do domínio da linguagem, descartando sua relação intensa com o viver, eu diria que estamos nos afastando tanto da morte que um dia ela não será mais do que uma palavra. Então já estaremos demasiado mortos para perceber o equívoco em que nos metemos. Por outro lado, o que tem feito o homem em prol da palavra no sentido de que a mesma o salve de si mesmo? São questões filosóficas, no geral. No livro de registros de uma delegacia de polícia a situação é outra. A rigor o homem chegou a uma dicotomia grosseira: autor e vítima do mesmo crime. A criminalidade tornou-se um dado assustador e determinante de nossas vidas – não me refiro simplesmente ao jogo passional dos disparos, mas a uma sofisticação que envolve tanto corrupção quanto pedofilia. Nada mais débil hoje em dia do que a ideia de um transgressor. Evocar a transgressão é não conhecer os códigos em que essa linguagem atua. Como é possível dizer: ah tudo o que eu queria era um poema de amor? Então não distingo uma coisa da outra, porque posso estar vivo ou morto pela palavra, e isto não fazer sentido algum.

JAL ¿Qué papel desempeñan en tu poesía la plástica y la música, ¿Cómo las incorporas o las refieres?

FM Talvez eu pudesse dizer que se trata de uma questão de oportunidade, considerando o fato de que meus pais ouviam muita música e que era igualmente intenso o acesso a edições de obras plásticas. Mas o que havia de mais impressionante em casa, para uma criança, era a quantidade de livros da biblioteca de meu pai. Então eu presumo que a diversidade com que as coisas se apresentavam diante de mim tenha sido determinante. Mas claro que tudo isso se encaixava em certa natureza insaciável, algo que segue caracterizando tudo o que faço. O fato é que o mundo não nos absorve através do que lemos, mas antes através do que ouvimos, vemos, tocamos, cheiramos, degustamos. A leitura – compreendida em seu aspecto habitual – não é um dos sentidos humanos, mas sim a conseqüência da atuação plena desses sentidos. Em grande parte a fixação dos intelectuais pela leitura vem de seu temor de misturar-se à matéria queimante da existência. Quando escrevo – e nisto é preciso que se diga que não penso senão raramente em um poema em isolado – estou sempre imaginando toda uma plasticidade, dinâmica, argumento etc. É como se me sentisse mais um dramaturgo do que propriamente um poeta. Imagino o poema-livro como algo que aja tridimensionalmente.

JAL Entre una poesía del lenguaje y una poesía inquieta aún por el hecho mismo de la vida, más preocupada por conmover, tocar al lector, es que advierto se mueve tu poesía. Quiero decir que no es experimental hasta sus últimas consecuencias, no pretende el balbuceo, el juego fonético o la segmentación semántica, sino que se desliza por una lógica más o menos incluyente. ¿Qué opinaría un surrealista de ello?

FM Muitos surrealistas diziam – dizem ainda – que a poesia está em outro lugar. Mas qual seria este outro lugar? Quantas vezes o estado de verdade imediata, defendido por Tristan Tzara, foi além das obras de circunstâncias a que se referia André Breton? O primeiro leitor que um poeta deve arriscar-se a tocar é ele próprio. É impressionante a quantidade de poetas que andam pela vida sem se deixar tocar pela poesia. Apesar do surrealismo a poesia continua sendo percebida como um jogo de palavras, apenas. Para mim, o experimental não dissocia instrumento e sensação. Quando digo que o que nos impressiona se imprime em nosso espírito isto não é de todo apenas um jogo de linguagem. Mas é necessário que haja uma verdade nisto. Caso contrário, a comoção torna-se panfleto, regra. O instrumento é um recurso. Entendemos bem quando o assunto é um piano. Ah sim, trata-se de música… Mas quando o verbo está em questão… É a minha vida que supera a escrita e nunca o contrário, por mais que eu tenha pleno domínio da linguagem.

JAL Tus poemas a menudo se presentan como un panteón lírico, donde uno puede seguir puntualmente la huella de tus afectos y tus influencias, o mejor digamos tus lecturas, no siempre vanguardistas. ¿Qué hay de cierto en lo que digo?

FM Não cabe essa distinção. Não vejo em que circunstância a poesia não se identifique com o lírico. Claro que não me refiro a panteão, mas antes ao simples ato da escrita. Estamos a conversar – o poema é uma forma de diálogo, não? – com o que se passa diante (e dentro) de nós. Tivemos uma sobrecarga no que diz respeito ao termo vanguarda e isto por vezes gerou um mal-entendimento do que possa ser substancioso. O conceito de vanguarda foi tanto explorado que vive hoje um desgaste excepcional. Mas há que entender que uma coisa é o recurso, o diálogo, a caixa de Pandora, e outra a maneira como o objeto final, saído desse diálogo, se apresenta. Da maneira como colocas a questão, há uma distinção fundamental em termos de caráter da escrita no que diz respeito a sua estrita relação com quem a escreve.

JAL Para darle paso a otra temática, evoco la pregunta que te haces en un verso de tu poemario Alma en chamas (Alma en llamas): “Qué hombre habita en mí?” ¿Tiene respuesta esa cuestión?, ¿hay alguien diferente a Floriano que ocupa su existencia y dicta su poesía?

FM Há inúmeros. Não diria que propriamente distinto de mim ou que dite, em isolado, o que escrevo. Não creio em voz própria que não seja a consonância de uma multidão de vozes. Algum crítico já observou a condição sinfônica de minha poética e devo estar de acordo. Somos, ao menos em parte, aquilo que nos consome. E pôr em dúvida o homem que lhe habita é o mínimo que um poeta pode exigir de si antes de pretensamente declarar-se uma antena da raça.

JAL Me has dicho, en nuestras largas conversaciones por las calles y las playas de Fortaleza, que Brasil sólo mira a Brasil, asombrado, quizás, por su propio gigantismo geográfico o quizás confuso por su enorme y bello mestizaje. Tú mismo eres una muestra de que hay búsquedas para tocar y ser tocado en y por el exterior. ¿Excepción o regla?

FM Em boa hora esta menção à mestiçagem. A rigor sempre estivemos na alça de mira de uns obcecados pela pureza, os tementes de todo tipo de miscigenação, racistas que buscam eliminar a fusão, o encontro, o encantamento que somente o mergulho no outro propicia, e o fazem por incompetência, por apego a uma condição mesquinha que nada tem a ver com o argumento de defesa de uma cultura. O que há de mais forte na cultura brasileira está em sua mistura, o que acaba por atropelar a muitos a quem simplesmente falta fôlego para compreender o mundo em pleno torvelinho de experiências inesgotáveis. Não temos problema de arritmia. O que temos é um excesso, de ritmos e deuses, cuja mescla tempestuosa por vezes atordoa. Somos a terra plena do transbordamento. A ideia de um gigantismo tem uma conotação dúbia: por um lado nos cega em relação às afinidades culturais evidentes e por outro lado desperta certa inveja no tocante ao que nos é aparentemente superior. Não é que só olhamos para nós mesmos. Muito pelo contrário: somos cegos de tudo, inclusive de nós mesmos. Tudo o que era mais visceral e sofisticado nas imagens poéticas de autores como Celso Luiz Paulini, Claudio Willer, Rodrigo de Haro e, sobretudo, Roberto Piva, poetas identificados como de uma geração dos ’60, por exemplo, nada foi percebido pela crítica, e isto se deu porque essa poesia rompia com certo padrão de formalismo, sobretudo considerando então a passagem de bastão da Geração de 45 para o Concretismo. Então não é nossa mestiçagem que suscita uma confusão, mas sim a linha dura de um positivismo que temos entranhado em nós, cujo beletrismo é apenas uma de suas facetas.

JAL Además de poeta, traductor, ensayista y editor electrónico eres un fuerte crítico de la poesía en tu país, el cual hay que reconocerlo posee una rica tradición poética ¿Qué rescatas de esa herencia?

FM A ideia de uma tradição implica em transmissão, em reconhecimento. Neste sentido, não se pode falar em tradição lírica no Brasil, exceto se pensarmos na grande linha parnasiana que define toda a nossa trajetória poética. Temos que pensar bem nisto. O formalismo ornamental e edulcorado seria então a nossa tradição? Nas últimas décadas tivemos uns rapazes que retalhavam a sintaxe, primavam pela incompreensão, simpatizantes da ruptura a todo custo, inclusive a custo do entendimento dela própria. Ainda estão por aí alguns desses rapazes. Não, não possuímos uma rica tradição poética. O que se passa é que em alguns casos a poesia brasileira é melhor conhecida no exterior do que em casa. Temos uma tradição outra, um rio subterrâneo que tem sido grosseiramente desprezado. Talvez os mexicanos se lembrem ainda de José Santiago Naud (1935), cujo livro Piedra Azteca teve unicamente uma edição mexicana (Papeles Privados, 1985). O próprio Jorge de Lima, para muitos a maior expressão poética do país, é nome de pouca circulação. Ao contrário, abundam as louvações a poetas nitidamente de segunda linha, como Mário e Oswald de Andrade. A melhor herança a ser resgatada não é aquela que se detém em nomes, mas sim no caráter que a determina. A cultura brasileira está muito perigosamente contaminada – o que se acentua mais e mais nos dias de hoje – por um sentido muito particular de decomposição. Não se trata apenas dessa avalanche de corrupção que a mídia anuncia a todo instante. Trata-se de uma depravação de senso ulterior, estamos nos desfazendo por falta de acreditarmos em nós mesmos. Estamos colhendo agora o fruto de toda uma história de falta de atenção para o que verdadeiramente somos. Fazer a defesa agora de uma identidade cultural – a despeito de toda a instância retrógrada que envolve o tema – é de um cinismo, de um oportunismo descarado, coisa de gente que não quer senão seguir descarnando o cadáver dessa cultura. Até o último instante, sem drama ou carnaval, quando então se mudam todos para um outro paraíso fiscal.

JAL ¿Cómo se conforma desde tu punto de vista la República de las letras (de la poesía) en Brasil?

FM Toda casta intelectual se organiza sempre no sentido de cooptação com o poder. Tal concubinato fez de nossa república das letras uma jovem senhora muito dedicada aos prazeres da carne, relutante em considerar a existência do espírito. A ausência de uma tradição crítica – e refiro-me não à crítica de circunstâncias, mas àquela área da percepção interessada em evidenciar eventuais equívocos de um texto, propondo-se a iluminar suas zonas escuras, sem uma determinação judicial que venha a eliminar a obra em questão por discórdia estilística ou outro mazelo existencial qualquer –, pois bem, essa ausência, já clássica entre nós, brasileiros, contribui para a persistência pasmada nos mesmos erros, em muitos casos os mais primários.

JAL Sin ánimo de competencia y de comparación, pero tomando en cuenta tu trabajo editorial y tu larga experiencia como entrevistador ¿Cómo percibes el desarrollo de la poesía en tu país con respecto al resto de Iberoamérica (incluyendo a Portugal y a España)?

FM Creio até que seria irresponsável a comparação. Uma coisa é uma seleção de grandes poetas – e isto se pode achar na Espanha, em Portugal, no Brasil e na América Hispânica (não esquecer que aí a aventura teria que enveredar por 19 países, com suas peculiaridades magníficas). É bem provável que os nomes sejam desconhecidos para além de sua restrita área de atuação. Ainda que de gerações distintas, não creio que gozem do conhecimento internacional que merecem poetas como José Ángel Valente (Espanha?), Luís Miguel Nava (Portugal?), Roberto Piva (Brasil?) e Ludwig Zeller (Chile?). Outra coisa é acreditar que essa resplandecente minoria possa vir a constituir uma competência. Uma característica marcante do espírito dos poetas brasileiros, em linhas gerais, é o provincianismo, e digo isto no sentido de que jogam muito com as aparências – da escrita e do caráter, posto que separam uma coisa da outra. Isto faz com que se tornem reféns de uma compulsiva novidade, que mudem de roupa (a linguagem, ah esse garfo e faca da linguagem!) ao sabor do convite que recebem para um evento de turno. Há os que não, sim, há os que não. Agora me lembro que antes de iniciarmos nossa conversa eu havia me decidido a não citar nomes. Isto causa uma confusão medonha, porque somos propensos a nos identificarmos com os personagens errados. Imagine se digo aqui um nome, por exemplo Hilda Hilst (uff!, esta por sorte já morreu), e ela própria, sim, ela própria, não entende que essa minha afirmação é uma maneira de me preocupar com algo que me é afim… Chega de citar nomes. Todos são os brilhantes poetas que se imaginam ser.

JAL Por último. ¿Estás convencido de que el proyecto Agulha, además de poner en contacto a los escritores de América Latina y el mundo, pueda ser un factor de calidad y avance en nuestras letras, digamos ¿una aguja sobre el globo de la complacencia y la endogamia?

FM Não tenho dúvida alguma quanto a isto. A leitura conjunta dos editoriais da Agulha aponta neste sentido, confirmando a pauta abrangente que temos propiciado em 4 anos de atuação. Decerto que temos um número de leitores que deve ser considerado. Contudo, pertencemos a um mundo virtual, com suas rejeições da parte de uma realidade impressa que ainda não percebeu que fere a si mesma ao nos refutar. Evidente que o que a Internet nos propicia possui em si a mesma carga de ambigüidade que qualquer outro instrumento. Sempre será possível salvar ou ceifar uma vida com a mesma arma.

[2004]

[Entrevista concedida a José Ángel Leyva. Originalmente publicada em La Jornada Semanal. Suplemento cultural do jornal La Jornada. México, 10/10/2004. Integra o livro O hábito do abismo (Entrevistas com Floriano Martins), de Márcio Simões (ARC Edições: Fortaleza, 2013).]





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