O surrealismo está ainda marcadamente ligado ao francês
André Breton e seus pares, que fundaram o movimento em 1924 com o primeiro manifesto
em Paris. O crítico, tradutor e poeta cearense Floriano Martins, 44 anos, resgata
a expansão hispano-americana surrealista. Mostra que a escrita automática, em que
falar é pensar, não se restringiu à Europa, muito menos à primeira metade do século
XX, ganhando expressões singulares no Peru, Chile, Argentina, Venezuela e Brasil
até os dias atuais. O esplendor verbal, a magia vocabular, o espírito transgressor
e a palavra como realidade total estiveram também presentes nas obras de Aldo Pellegrini,
César Moro, Enrique Molina, Emilio Adolfo Westphalen, Enrique Gómez-Correa, Juan
Sánchez Peláez, Ludwig Zeller, Juan Calzadilla, Roberto Piva, Sérgio Lima e Raúl
Henao. Tais nomes não soam conhecidos, familiares, parecem não sintetizar a enciclopédia
surrealista, assim como os batidos verbetes Philippe Soupault, Paul Éluard, Artaud,
Crevel e Robert Desnos. Mas uma revisão está sendo feita. É preciso ampliar desde
já o vocabulário. Se o surrealismo era proclamado por Breton como o que será, Floriano
Martins busca antes decifrar o que ele realmente significou. Invertendo sabiamente
o título La Búsqueda del Comienzo de Octavio
Paz, O Começo da Busca (Escrituras, 288
págs., R$ 13) desvela os mais autênticos surrealistas da língua portuguesa e espanhola,
desfazendo as aparências do passado e abrindo o futuro. Martins empreende uma viagem
imaginária digna de um antropólogo do inconsciente. Traz traduções impecáveis dos
principais poemas de 12 autores, informações epistolares, entrevistas e defesas
estéticas de várias correntes. Demonstra que houve surrealismo no Brasil e na América
Latina, com amadurecimento orgânico a partir das peculiaridades de cada país, e
que isso não foi uma extensão espúria nem tardia e periférica do grupo de Breton.
Em entrevista exclusiva ao Rascunho, Floriano
Martins, autor de Escritura Conquistada
(1998), promove um novo horizonte de discussão e comenta os enganos da crítica.
[FC]
FABRICIO CARPINEJAR Quais foram os entraves
para sua pesquisa, que tenta revelar os mais diferentes movimentos surrealistas
na poesia hispano-americana até então obscurecidos pela historiografia?
FLORIANO MARTINS As relações culturais entre
Brasil e América Hispânica são inexistentes. Não há uma particularidade envolvendo
o Surrealismo. Trata-se de uma grande cegueira dos governos de ambos os lados. E
para tanto têm contribuído artistas e intelectuais, com um fascínio provinciano
seja pela França ou pelos Estados Unidos. Há um isolamento sistemático e o rompimento
dessa situação não é algo que se possa esperar vindo de uma visão acadêmica de mundo.
Como praticamente parti do zero, nem cabe considerar os entraves. De qualquer maneira,
o maior entrave existente para um descuidado leitor é a Antología de la poesía surrealista latinoamericana, organizada por Stefan
Baciu. Trata-se ainda hoje de livro de referência, com equívocas colocações, não
compreendendo ser distinta da matriz parisiense a perspectiva de um Surrealismo
na América Latina. O mais curioso neste livro é que fomenta o conceito do “mas nem
tanto”, estabelecendo uma condição “para-surreal” para aqueles que não firmaram
manifestos. Claro está que alimenta a grande ruína de nosso tempo: a falácia conceitual
e a conseqüente derrocada de sentido.
FC Apesar de sempre reforçar
a ideia de movimento, O Começo da Busca
qualifica, em várias passagens, o surrealismo de aventura. Isso não é uma caracterização inapropriada, de algo fugaz
e passageiro?
FM A etimologia do termo nos
leva ao que está por vir, uma entrega ao desconhecido, o que é inaceitável em nossa
formação positivista. O culto do permanente liga-se a uma vida eterna prometida
por senhores suspeitos e soa como contradição risível ante o frenesi do mercado.
A existência humana não se limita a preceitos. O surrealismo é essa entrada na matéria
real da existência humana: o abismo, o assombro, o inesperado, o vertiginoso, o
maravilhoso. Trata-se, a rigor, de uma aventura.
FC O argentino Enrique Molina
define o surrealismo como um humanismo poético. O fato de propor uma nova conduta
de vida dentro e fora da poesia não acabou partidarizando o movimento, conduzindo-o
para incursões que não condiziam com o texto propriamente dito? (Um exemplo são
os surrealistas franceses que sucumbiram ao Partido Comunista, transformando sua
irracionalidade em militância racional).
FM Disse certa vez o Octavio
Paz que há um momento em que se tem que escolher entre vida e obra. Talvez venha
daí a ressalva essencial que teria em relação ao Breton. Me parece ingênuo achar
que a escritura automática, por exemplo, implicasse em um desnorteamento de si mesmo.
A melhor poesia de Paz, rigorosamente, está impregnada de surrealismo, apesar dele
haver apagado as pistas nas notas finais que acompanham a publicação das Obras Completas. O vínculo entre surrealismo
e comunismo se recrimina hoje, em parte, pelo distanciamento histórico, mas não
se pode restringir a compreensão do Surrealismo a uma multiplicação sistemática
de erros. Lembro que, no Brasil, já em 1930, Alceu Amoroso Lima falava em uma “inextinguível
sedução comunista”. Enrique Molina dizia que “a poesia tem que nascer, não de ideias
intelectuais, mas sim de vivências profundas”. Decerto vem daí a dificuldade dos
poetas brasileiros compreenderem esse humanismo
poético: uma ausência de vida própria mesclada a um artificialismo que sempre
caracterizou nossas letras.
FC A poesia surrealista é uma
das mais refinadas, em que o pensamento se faz por imagens. Esse é o principal motivo
que dificulta sua difusão?
FM Há uma ideia de refinamento
que nos leva a um cálculo a frio. Não creio que caiba aí pensar em Surrealismo.
A imagem no sentido que nos interessa refere-se a um transbordamento de visão. Há
um mínimo de sentido plástico, de percepção estética, que nos permite dizer de um
rabisco qualquer que se trata de uma obra de arte. Muita poesia dada como surrealista
pode ser ingênua ou infeliz. O grande ponto de cegueira de nosso tempo radica em
uma promiscuidade. O mercado determina a abrangência da imagem. Artistas e críticos
dizem amém. E tua ideia de refinamento torna-se apenas decorativa ou circunstancial.
FC O poeta brasileiro Roberto
Piva debochou da produção contemporânea: “o que temos no campo da poesia é a riminha
safada de véu e grinalda para embalar devaneios universitários”. Piva está se referindo
a que poesia? Não é errado defender grupos destruindo outros?
FM Antes quero ter um cuidado
de não cair nesse ardil sectário. Há uma precariedade existencial em nossa tradição
poética, sempre determinada por uma feição parnasiana. Piva referia-se àquela poesia
pós-tudo, de uma garotada encharcada de
Concretismo e fruto de uma leitura deformada da obra da João Cabral. A situação
piorou bastante e bem imaginamos o que não diria hoje dela o Piva. A realidade da
cultura brasileira – e não me refiro aqui apenas à arte – tem sido o sectarismo
de gabinete, a exclusão a portas fechadas. Piva troa sua voz abertamente. E sofreu
por conta toda forma de exceção.
FC É possível arrolar os motivos
que levaram o mexicano Octavio Paz e o chileno Gonzalo Rojas a pedirem a desvinculação
de suas poesias do surrealismo? Por que o movimento virou um estigma?
FM Não sei se o correto seria
falar em estigma. Há erros de leitura, distorções etc., mas não propriamente um
estigma. Paz estava tomado de si, vivia em um mundo onde ele era o próprio centro
triunfante. O caso do chileno Rojas relaciona-se com uma grave discussão com Enrique
Gómez-Correa, quando da criação do grupo Mandrágora, os dois ficaram décadas sem
se falar. Mas não se pode transformar briga de rua em estigma. Esses deslizamentos
são ocorrências verificáveis em outros ismos.
FC Uma das acusações ao movimento
surrealista brasileiro era sua tardia manifestação nos anos 60, tendo em vista a
eclosão do movimento em 1924, na França. Seu livro demonstra que o surrealismo brasileiro
já era um desdobramento, tinha atualidade, sincrônico à produção realizada pelo
Cesariny e Helder em Portugal e Paz no México.
FM Gosto muito da imagem de
uma sociedade “providencialmente analfabeta”, expressão cunhada por Alcântara Machado.
Por vezes me parece que nossa crítica é providencialmente
alheia. Nos anos 60 importava sobretudo relações com argentinos e venezuelanos.
Um grupo como Techo de la Ballena, de
Caracas, estabelecia uma afinidade com a crítica corrosiva defendida por Willer
e Piva. Muitas formações grupais foram sendo estabelecidas ao longo de duas ou três
décadas sem que esse distanciamento de 1924 constituísse um empecilho. O próprio
surrealismo bretoniano, por assim dizer,
sofreu diversas acomodações e datações. É preciso entender que o problema brasileiro,
assim particularizado, nada tem que ver com o Surrealismo.
FC Percebo em seu ensaio uma
crítica velada ao modernismo. Os modernistas teriam sido o principal obstáculo para
o fortalecimento surrealista no Brasil? Pensamos, por exemplo, na adoção de Benjamin
Péret e Blaise Cendrars (que estiveram no Brasil) pelos modernistas? Houve tal confusão?
FM Já em 1927 dizia o Alcântara
Machado: “O modernismo brasileiro hoje em dia mais parece centro de debates do que
movimento criador”. Não se trata de fortalecimento do Surrealismo, como dizes, mas
de debilitação sistemática de uma cultura que estava em plena fase de amamentação.
O mesmo Alcântara situava a “exuberância livresca” e a “ignorância frondosa”, como
sendo “dois males do modernismo brasileiro”. Stefan Baciu, por sua vez, diz que
em uma conversa com Péret, no Rio de Janeiro, em 1955, acerca “do surrealismo no
mundo e na América Latina”, definiu o plano daquela antologia dele. Acaso essa conversa
teria sido decisiva na ausência de brasileiros em uma antologia de âmbito latino-americano?
Quantos desfoques estavam sendo processados naquele momento. Precisamos rever nossa
história toda. Não é somente o modernismo que é falho de contextualização, claro,
mas que há ali uma série de fatores que devemos reconsiderar, isto sim.
FC Claudio Willer, Roberto
Piva e Sérgio Lima são subestimados no cenário poético atual?
FM A seco, eu responderia que
sequer são percebidos, mas há uma distinta consideração em torno de cada um. Roberto
Piva sempre foi um notável franco atirador. Dentre todos os poetas brasileiros é
o que melhor sabe mesclar Surrealismo e Beat Generation, sem limitar-se a mera cópia.
Sérgio Lima fez clara opção pela historiografia, saindo de cena o poeta que até
meados dos 80 ainda publicava. Claudio Willer fortaleceu a natureza de agitador
cultural e por aí foi. Também ficou sem publicar poesia, embora tenha publicado
uma narrativa autobiográfica na década passada e tenha sempre participado de leitura
de poemas. Enfim, apenas o Piva seguiu publicando poesia, o que nos força a rever
essa leitura de uma subestimação. Não creio que haja uma particularidade de cunho
surrealista envolvendo o tema, insisto. É preciso não criar mais saco de pancadas,
entende? Aos poucos criamos uma história de coitadinhos.
O Brasil não se percebe, é um país às avessas. E geralmente os resmungos são fortuitos
e incabíveis.
FC Murilo Mendes é um caso
de falso surrealista? Há, por sua vez, surrealistas ocultos na poesia brasileira?
FM Eu não diria propriamente
de Murilo que se trata de um falso surrealista.
Malandramente brasileiro descobriu um ponto de não se indispor com ninguém. Tem
uma obra admirável, o que não encontramos nos dois Andrade, Mário e Oswald. O desdobramento
da poesia brasileira não teria necessariamente que dar no Surrealismo, não vamos
trocar um sectarismo por outro. As figuras ocultadas dizem respeito a um programa
mais austero, onde o Surrealismo não era senão um ponto. Em ensaio recente Fábio
Lucas menciona que a essência da proposta surreal de Murilo Mendes “vem da inspiração
onírica entrelaçada com a rebeldia antiburguesa”, mencionando ainda que “o seu surrealismo
ora apresenta um transbordamento barroco, ora é contido e seco como um clássico”.
FC De que forma o surrealismo
influenciou sua poesia?
FM Uma afinidade vinculada
à ideia de desprendimento. O verso somado à existência, sim, mas cobrando valor
para ambos. Tal identificação não anula outras presenças essenciais à minha poética.
A própria relação entre Surrealismo e Barroco na tradição poética hispano-americana
– o que não houve no caso brasileiro – reforçou em muito minha percepção. Desde
uma primeira leitura senti uma afinidade enorme, por exemplo, com a poesia de Enrique
Molina e Ludwig Zeller, e em ambos se pode pensar nessa mescla de Barroco e Surrealismo.
FC O Sr. trocou correspondência
e manteve laços estreitos de convivência intelectual com a maioria dos poetas analisados
em O Começo da Busca. A ligação afetiva
não pesou no julgamento estético?
FM Há sempre o risco. Contudo,
o livro apresenta uma mostra substanciosa de poemas desses poetas e a diversidade
estética que os define cuida de negar interferência dessa condição afetiva. Inclusive
recupero vozes como Juan Sánchez Peláez, Juan Calzadilla e Roberto Piva, que já
não se encontravam mais percebidos como surrealistas. O assunto é inesgotável, e
gostaria de mostrar ao leitor brasileiro poetas como Julio Llinás, Carlos Latorre
e César Dávila Andrade, por exemplo. Creio que este livro é um primeiro momento
para se eliminar certo vício de isolamento e conseqüentes distorções de leitura.
FC Quanto tempo demandou de
entrevistas, ensaios e traduções para finalizar O Começo da Busca, que faz um apanhado inédito das expressões mais originais
na Argentina, Chile, Venezuela, Peru, Brasil?
FM É sempre difícil precisar
isto, pois não se trata de um contrato editorial ou de uma tese acadêmica. Há quase
duas décadas mergulho em textos fora de circuito que dizem respeito à poesia e à
crítica dessa poesia em âmbito hispano-americano. O Surrealismo é, portanto, parte
disto. Mas sempre me chamou a atenção, confesso, a maneira como certa rejeição ao
que fira a razão foi tomando corpo em nossa poética. O mais interessante é que a
realidade do país sempre feriu a razão. E o resultado dessa química foi uma razão
ferida sem consciência de, ou talvez uma razão preferencialmente ferida. De qualquer
maneira, o livro é fruto de um largo acompanhamento, viagens, troca de correspondências.
E traz consigo dois projetos paralelos: um volume de entrevistas a poetas latino-americanos
– cuja primeira versão se publicou em 1998 sob o título de Escritura Conquistada – e um outro de ensaios sobre os principais desdobramentos
estéticos ocorridos na poesia latino-americana no decorrer do século XX. Além disto,
há um segmento virtual, o site Banda Hispânica,
que coordeno para o Jornal de Poesia,
um banco de consultas permanente sobre poesia hispano-americana, onde já se encontram
à disposição do leitor centenas de páginas, e o mantenho constantemente atualizado.
E há ainda a revista Agulha, que dirijo
com Claudio Willer, que está parcialmente empenhada na difusão do Surrealismo.
FC Depois da exposição surrealista
no Brasil, parece que vingou uma preocupação revisionista. Não são poucas as obras
que tratam do tema lançadas nos últimos anos: Vanguardas latino-americanas, de Jorge Schwartz, A Aventura Surrealista, de Sérgio Lima, e
Surrealismo e Novo Mundo, de Roberto Ponge.
Como o Sr. situa O Começo da Busca entre
esses livros?
FM Em 2001, podemos enumerar
o dossiê da revista Cult, o simpósio promovido
pela UNESP e a exposição do CCBB. Este meu livro sai inclusive com data de 2001,
no apagar de luzes do ano. Todo revisionismo está intrinsecamente ligado a uma nova
seção de equívocos, sobretudo quando não consegue escapar de um modismo. O Surrealismo
não foge ao tema. Há uma bibliografia sobre Surrealismo que ainda não se encontra
devidamente assimilada. Valentin Facciolli, por exemplo, tem escrito algo relevante
sobre o assunto. Claudio Willer tem dado contributo impecável em termos de artigos
na imprensa. Jorge Schwartz, assim como José Paulo Paes e Gilberto Mendonça Teles,
apresentam uma cronologia sumária dos acontecimentos, onde claramente se detecta
um esquematismo sem maior conseqüência. O livro organizado por Robert Ponge reflete
bem essa diversidade até aqui aludida. O primeiro volume de A Aventura Surrealista, de Sérgio Lima, requer
a continuidade editorial para que se constate a validade. De qualquer maneira, o
que impera é a necessidade de estabelecer uma discussão aberta sobre os acontecimentos,
desde que colocados com isenção e honestidade. Acho que O Começo da Busca cumpre esse papel.
[2002]
[Entrevista
concedida a Fabrício Carpinejar. Originalmente publicada no jornal Rascunho # 24. Curitiba, abril de 2002. Integra
o livro O hábito do abismo (Entrevistas com Floriano Martins), de Márcio
Simões (ARC Edições: Fortaleza, 2013).]
Nenhum comentário:
Postar um comentário