Se a inteligência de um homem é proporcional à sua
capacidade de estabelecer recusas, ao conversar com o cearense Floriano Martins
tem-se a nítida sensação de estar diante de um homem muito bem dotado dessa faculdade
tão mal distribuída entre os seres humanos, sobretudo entre os intelectuais. Autor
do livro de poemas Alma em Chamas, certamente
um dos acontecimentos poéticos das últimas décadas, e de uma obra volumosa que abrange
ensaios, crítica, tradução e entrevistas com poetas, além de uma série de inéditos,
Floriano é um dos maiores conhecedores da poesia latino-americana moderna e contemporânea
entre nós, e vem fazendo pontes das mais estimulantes entre essas literaturas e
o Brasil. Mas, para nossa surpresa, é uma voz solitária e praticamente isolada em
sua proposta. Pela importância e amplitude desse trabalho, veiculado, sobretudo,
nas revistas virtuais Agulha e Banda Hispânica, das quais é editor, assusta
sabermos que ele não tenha maior repercussão. [RP]
RODRIGO PETRONIO O segundo volume de O Começo da Busca vai ser uma continuidade
do primeiro ou vai propor outras diretrizes poéticas e conceituais que convirjam
para o Surrealismo? Fale um pouco do projeto como um todo.
FLORIANO MARTINS A princípio não havia nenhuma
ideia de segundo volume, por mais que o assunto não pudesse ser responsavelmente
resolvido em 300 páginas. Confesso que já foi um obstáculo e tanto vir a editar
este livro. A acolhida da Escrituras foi providencial e o objeto final me é bastante
simpático. Ao vê-lo publicado é que comecei a pensar em lacunas que deveriam ser
preenchidas, todas dentro da mesma perspectiva. Não há porque buscar uma ótica outra
se estamos tratando de um tema de tamanha amplitude e ainda não de todo ambientado.
Há uma pressa entre nós brasileiros de mudar de assunto ou diretriz que reflete
apenas uma frivolidade. Somente agora é que começo a pensar no que chamas “do projeto
como um todo”. Em carta enviada, pouco antes de morrer, ao grupo surrealista de
Chicago, escreveu Pierre Naville “que o mundo atual deverá conhecer uma explosão
surrealista muito maior do que aquela que se deu em Paris, em 1924” . Isto foi em 1992, e até
então o Brasil não conhecia absolutamente nada do surrealismo em suas vertentes
hispano-americanas. Mesmo hoje há ainda muito a ser revelado e bem sabes que sou
uma voz praticamente isolada nesse processo. Na continuidade de meu trabalho vou
chamar a atenção sobre outros poetas, frisar as relações entre vários deles – em
termos de ação e poética – e apresentar novas entrevistas. Além disso, estou escrevendo
um volume apenas de ensaios, em que vão se revelando cronologicamente os dados essenciais
para uma leitura dessa explosão a que se refere Naville, já em ambiente latino-americano.
RP Em O Começo da Busca você demonstra justamente que é possível traçar uma
história da literatura latino-americana a partir do Surrealismo. Você defende um
Surrealismo policêntrico, que emergiu por aqui em diversas etapas e sob diversas
circunstâncias, ao contrário da ideia de um movimento epicêntrico, com sua origem
datada nos manifestos de André Breton. Fale um pouco sobre isso.
FM Não havia ideia de epicentrismo
nem mesmo naquele bando mesclado de ex-dadaístas que se reunia em torno de Breton.
Acho que há algo em comum, o princípio libertário que norteia o Surrealismo, não
resta dúvida. Mas a manifestação desse princípio na América Latina se deu investida
de um otimismo, inclusive uma crença voluptuosa na linguagem e não apenas na ação.
Não cabe falar em emancipação porque a relação entre os países latino-americanos
e a Europa possui vários matizes. Não há o que se possa chamar de “nossa história”.
Não temos uma história comum, no sentido em que jamais a percebemos sob tal ângulo.
No caso brasileiro, nossa relação com a Europa estava mais acentuadamente ligada
à França de Claudel, Verlaine, Valéry. Desnecessário dizer que me refiro a um mapa
oficial dessa cultura. Tzara, Reverdy ou Breton eram nomes pouco mencionados por
aqui. E uma imediata aproximação entre Surrealismo e marxismo, por exemplo, afastou
de vez toda possibilidade de uma filiação do Brasil a essa corrente libertária que
se anunciava. Nenhuma história corre independente, pois a história é uma mescla
de fatores, e sequer pode ser tão levianamente lida como tardia ou antecipatória
em relação a qualquer aspecto que se coloque. Quando se pretende um recorte isolado
o que se está fazendo é falsear a história – a exemplo do que tivemos tanto na Semana
de Arte Moderna quanto no Concretismo.
RP Como você situa algumas
vozes fortes como César Vallejo e Vicente Huidobro nesse panorama?
FM Grande dilema o de atestar
vínculos. O Surrealismo procurou romper com a ideia de clubismo, e mesmo assim muitos
se aproximaram dele como se buscassem apenas uma carteira. Essa ambigüidade – se
cabe o termo – gerou rejeições famosas, manifestas de várias maneiras. Vallejo e
Huidobro são dois casos paradigmáticos. O chileno é apontado pelo romeno Stefan
Baciu como um dos precursores do Surrealismo na América Latina. Já o espanhol Ángel
Pariente situa o livro Trilce, de Vallejo,
como sendo de recorte surrealista. Huidobro tinha um ego assombroso e jamais admitiria
influência de quem quer que seja, o mundo começava nele. Creio que foi o poeta que
mais redigiu manifestos – há um largo volume que recolhe todos eles –, manifestos
de um homem só. Já o peruano estava tão impregnado de comunismo que a própria ruptura
de linguagem que alcança em Trilce seria
posteriormente enfraquecida em outros livros. De qualquer maneira, creio que a desconstrução
neste livro do Vallejo tende mais ao dadaísmo – embora não tão nítida como no caso
de En la masmédula, de Girondo – do que
ao Surrealismo. E Huidobro estava, como o sabemos, demasiado impregnado de Cubismo.
RP No Brasil, nosso conhecimento
da literatura latino-americana se restringe à trinca Borges, Paz e Neruda. Quanto
a Lezama Lima, há ainda o agravante de ter penetrado aqui por intermédio do Concretismo,
que importou a imagem deformada e afetada que o Neobarroso de Nestor Perlonguer fez dele. Fale de outros poetas e poéticas
americanos.
FM Talvez seja melhor começarmos
falando dos prejuízos advindos da limitação e, sobretudo, do falseamento dentro
desse âmbito restrito. É precário aceitar a presença de Borges, Paz e Neruda como
grandes poetas, ainda mais sob o crivo de fundadores da modernidade na poesia hispano-americana.
Borges era um fabulista, mestre imbatível na arte de tornar a si mesmo o grande
personagem de sua obra e, por conseqüência, da tradição literária moderna. Gerardo
Deniz está completamente correto ao dizer que se trata de um poeta de imagens e
recursos previsíveis, enfadonhos. Paz possuía uma aguda percepção da realidade à
sua volta – soube ser inicialmente o crítico dessa realidade, mas acabou por converter-se
em cúmplice dela. Poeticamente cristalizou-se muito cedo. Neruda jamais buscou outra
coisa que não fosse tocar a imensidão do ego, e não reside em outro aspecto a máscara
cosmogônica com que revestiu sua poética
nos incontáveis experimentos estéticos a que a submeteu. Já o caso de Lezama possui
uma graça particular: há algo de enciclopédico
na visão de mundo do cubano que o aproxima de figuras como Peter Greenaway ou Haroldo
de Campos. A verdade é que todos querem ser Deus. E cada vez me parece que a grande
tradição poética é consubstanciada por quem se recusa a sê-lo. O venezuelano José
Antonio Ramos Sucre, por exemplo, matou-se por não suportar mais a presença de visões
que lhe assombravam a existência. Não vivia em um plano literário, mas sim na mesma
dimensão excessiva de um Artaud. Após o suicídio, em 1940, não foi mais lembrado
de maneira consistente. O Chile possui uma vertente múltipla que encontra em Pablo
de Rokha, Rosamel del Valle e Humberto Díaz-Casanueva uma fonte de renovação que
não desconsidera o autóctone e se manifesta no diálogo com a Europa. No colombiano
León de Greiff encontramos o mais surpreendente caso de polifonia na tradição poética
latino-americana. O guatemalteco Luiz Cardoza y Aragón soube buscar na algazarra
da modernidade uma voz que fosse a soma de todas; uma nova relação com o mito proposta
pelo nicaragüense Pablo Antonio Cuadra etc. O que me pedes não é fácil, toma um
livro. Sobretudo quando no Brasil desconhecemos toda essa tradição. Acho que a todo
momento atestamos a infelicidade de nossa ausência de mundo. Toda a sociedade brasileira
desmonta-se por esse desconhecimento de si mesmo, um mínimo estalo que nos leve
à relação com o outro. Sem ele, não há nada.
RP Você é dos poucos poetas
brasileiros que se preocupam com a dimensão política da arte, o que é, mais do que
louvável, necessário, em um momento em que intelectuais, escritores e artistas oscilam
entre uma burocracia mental aviltante e um espírito gregário cada vez mais acentuado,
ou, na pior das hipóteses, em seu idiotismo, mal sabem o que vem a ser a dimensão
política de uma poética. Como você vê a articulação entre essas duas esferas?
FM Se não me falha a memória
certa vez o Augusto de Campos referiu-se ao afazer poético como uma afasia. Isto
é curioso porque carece de autocrítica, ou seja, a quem exatamente ele estava se
referindo? Por aqui começamos nosso curso de idiotismo. Este é um formoso termo de alheamento da realidade, de criação
de uma linguagem isolada, que não se relaciona com nada. O idiotismo é a anti-poesia,
mas tem sido a tônica da poesia que se pratica no Brasil de algumas décadas para
cá. É curioso observar as maneiras distintas do ser idiota no poeta brasileiro.
Há os que se tornam reféns da pós-modernidade, que fazem questão de serem reconhecidos
como contemporâneos, por mais desarticulada ou retrógrada que seja essa pós-modernidade.
Na outra ponta estão aqueles que detestam a atualidade, os passadistas de carteira
e louvor, que pousam em bando como uma equipe de resgate da história. Evidente que
em um cenário desses, reforçado por uma tradição positivista, brigadas da TFP, política
cartorial, amiguismos, uma relação responsável
de complementaridade entre poética e política está fadada ao ideário das charges. Não te parece que o mais importante
na vida dos brasileiros é que algo te faça rir? Rir da própria miséria pode ser
uma tática de resistência, mas ser levado a isto é aceitar-se como instrumento de
uma perversão, com o qual somos todos coniventes. A chamada arte tornou-se mecanismo
de idiotização de uma sociedade carente de si mesma. O pão convertido em circo e
vice-versa. Somos todos absolutamente responsáveis por esse crime em larga escala.
A maneira como tocadores de violão são aceitos como músicos, modelos fotográficas
como atrizes, músicos como romancistas, jornalistas e redatores publicitários como
poetas ou roteiristas de cinema, enfim, a forma espúria como a mediocridade ascende
ao poder cultural em nosso país já se tornou um caso de polícia.
RP Você diz que o Surrealismo
teve pouca penetração no Brasil exatamente por causa de nossa tradição positivista,
o que eu considero uma análise agudíssima e correta. O que é curioso é essa estética
ter se imiscuído entre nós pelas mãos de dois poetas católicos e com interesses
místicos: Murilo Mendes e Jorge de Lima. Ao mesmo tempo, você tece algumas críticas
a esses poetas e sugere outros nomes. Isso está relacionado às eternas idiossincrasias
brasileiras? Como você analisa esse fato?
FM O Surrealismo estava na
pauta de rejeições de todas as culturas que buscavam uma identidade em meio àquela
eclosão destemperada de ismos das primeiras décadas do século XX. Basta pensar que
Lezama Lima ou Gaitán Durán possuíam articulações essenciais com o Surrealismo,
mas que não as admitiam em circunstância alguma, imbuídos que se sentiam da necessidade
de fundar algo em Cuba e Colômbia, respectivamente. É possível que o mesmo tenha
se dado com o Mário de Andrade, conhecedor que era dos vislumbres anunciados ao
mesmo tempo em que não lhes correspondiam – nem ele nem Oswald – em termos estéticos.
Então nos pegamos com réstias ou pequenos sinais de vida. Basta ler manifestos assinados
por ambos. Já em relação a Jorge de Lima e Murilo Mendes, façamos o seguinte: troquemos
catolicismo por cristianismo e misticismo por ocultismo, por exemplo, e já teremos
aí um novo ambiente conceitual onde o assunto começa a ganhar clareza. Vincule-se
cristianismo a comunismo e ressalte-se o interesse do Surrealismo pelas ciências
ocultas e ganhamos ainda mais em nitidez nessa relação por ti sugerida. O que chamas
de “idiossincrasias brasileiras”, é sempre o mesmo fruto podre de nosso desconhecimento
de causa. Eu não tenho nenhuma rejeição aos dois poetas. Acho impressionante que
se mencione tão amiúde o Drummond como nosso grande poeta, este sim tão católico,
tão conservador, tão transigente, tão acomodado às circunstâncias, sob quaisquer
aspectos que se mencione. O que digo em meu livro é que nossa crítica literária
necessita sair do lugar comum de tratar o Murilo como único surrealista no Brasil.
Isto não passa de um refúgio para evitar referir-se à questão como ela merece. Murilo
foi um grande transgressor, e mesmo naquele ambiente interiorano de uma Jandira,
por exemplo, já se ressaltava uma visão mais profunda de mundo, com um recorte filosófico
que não tínhamos em nós nem mesmo de maneira caricatural. É leviano – quando não
criminoso de vez – reduzir a poética de ambos ao que se chama de “poesia em Cristo”.
Como esperar que se manifestasse a explosão do ser em poetas marcados por uma exasperada
chaga católica que tanto define a história brasileira? Diante da irrelevante obra
poética de nomes como Mario e Oswald de Andrade, por exemplo, tento buscar outra
explicação, que não de ordem estética, para que poetas como Jorge de Lima e Murilo
Mendes não tenham sido até hoje lidos com a isenção que a obra de ambos cobra de
nossa crítica.
RP Falando em idiossincrasia,
há uma curiosa. Enquanto na América do Norte o fenômeno Walt Whitman já tinha acontecido
há décadas e na Europa tínhamos uma plêiade composta por Rilke, Valéry, Eliot, Pound,
Apollinaire, Joyce, Lorca, Breton e Proust (desconto Kafka e Pessoa por causa do
seu anonimato incipiente), Mário de Andrade resolve se agarrar a uma estrela cadente,
e importa a tagarelice de um italiano cuja fortuna mental e o talento irrisórios
deixaram para a posteridade um manifesto e algumas frases tão ridículas quanto ele
próprio: Tommaso Marinetti. Sabemos que o futurismo estava no front de toda a proposta modernista, e que
esse mesmo Modernismo, por razões muitas vezes meramente ideológicas, é a cartilha
sobre a qual reza a maior parte da arte que se fez e faz até hoje. À parte o valor
inquestionável da obra de Mario e Oswald de Andrade, há um legado bastante negativo
da Semana de 22, não? Como você avalia isso?
FM O legado da Semana de 22
equivale à leitura de curso das águas em uma lagoa. É nossa principal metáfora da
permanência, com a ambígua leitura de que é nossa entrada na modernidade. Mário
estava menos interessado nela do que em um projeto pessoal de afirmação de leitura
dessa modernidade. Os nomes ligados à Semana eram os do rebanho possível. Como Alberto
Nepomuceno morrera dois anos antes, embora deixando volumosa pesquisa sobre cantos
populares em todo o Brasil, e mesmo tendo posto o pescoço a prêmio ao colocar a
Sinfônica brasileira a tocar com Catulo da Paixão Cearense, por exemplo, inúmeros
fatos foram apagados e hoje cabe ao modernismo e em especial a Villa-Lobos essa
aproximação entre o popular e o erudito em nossa música. Também nas artes plásticas
teríamos muito a conversar sobre o injustamente reduzido prestígio de um artista
como Vicente do Rego Monteiro. Não se trata de “legado negativo”, mas sim de falseamento
da história e com a larga conivência de toda uma casta intelectual envolvida. O
mais curioso é quando escuto dizer do nacionalismo exacerbado do Nepomuceno, por
exemplo. Ora, ninguém fala em tal coisa quando se trata dessa íntima relação que
o Mário assumiu com o Futurismo, nitidamente de ordem nacionalista. Nacionalismo,
ressalte-se, no sentido de preparação para regime de exceção.
PR Fale um pouco mais desse
falseamento da história e desse regime de exceção. É ele que endeusa o Fernand Léger
de saia (Tarsila do Amaral) e praticamente risca do mapa um artista excepcional
como Ismael Nery? Que devolve o Concretismo ao centro do seu próprio umbigo cósmico
e torna opaca uma série de coisas em volta? Que eclipsa Augusto dos Anjos e confere
qualidade à versalhada de Mario de Andrade? Tenho a impressão que se Augusto dos
Anjos tivesse escrito em alemão haveria uma miríade de pedantes usando-o como epígrafe
em seus estudos sobre o expressionismo.
FM Acho que podemos rir um
pouco. Em uma das edições de dezembro de 2002, a revista Época publica um artigo de Antonio Gonçalves
Filho onde menciona a decorrência ingênua da pintura de Anita Malfatti, o realismo
socialista para onde escorreu a obra de Tarsila do Amaral, a decadência suburbana
de Di Cavalcanti e o exílio no academicismo em Brecheret. A princípio este é um
atestado de que a Semana de Arte Moderna não manteve a chama acesa nem mesmo enquanto
o bolo do primeiro aniversário era cortado. Ora, mas de que nos servia o cubismo
de Fernando Léger e a concisão de Brancusi, se não sabíamos o que propor, a partir
deles, em termos de um Brasil aclamado como bandeira da (nossa) modernidade? Trocar
xenofobia por xenofilia? Ismael Nery sabia o caminho. Mas ia de encontro à pretensa
ousadia nacionalista de nossos modernistas.
O mesmo vale para Cícero Dias. Uma coisa que tenho observado nessas leituras comemorativas
de nossa entrada na modernidade é que uma crítica de arte se manifesta de maneira
mais efetiva do que o correspondente, por exemplo, na música ou na literatura. Nem
falar em Niemeyer, que tornou-se um mito intocável de nossa arquitetura, uma curiosidade
na perspectiva de uma arquitetura funcional esse encantamento por um declarado comunista
que planejou espaços onde é bastante dificultado o encontro entre duas almas. Bom,
no caso da música o lobby de Mário de
Andrade em favor de Villa-Lobos foi decisivo. Agora, por que aceitamos tão passivamente
a importância de Mário e Oswald como poetas se não atendem, em circunstância alguma,
a uma perspectiva estética em que deveriam quando menos apontar certos traços renovadores?
O falseamento da história é exercido por um corte abrupto em relação ao passado.
Nossa modernidade parte do nada. O mesmo se repetiria no plano-piloto do Concretismo,
décadas depois. O regime de exceção é decorrente desse comportamento. Basta cotejar
cronologia artística e política – como se fossem entidades inconciliáveis! – e veremos
que a Semana de Arte Moderna é precursora do Estado Novo e que o Concretismo e o
Golpe de 64 são consangüíneos.
RP A propósito, temos no Brasil
duas correntes que se desenvolvem paralelamente e que parecem formar a esquizofrenia
fundamental de nossa intelligentsia. De
um lado, uma forte tradição dialética advinda do Idealismo Alemão, mais especificamente
de Hegel, busca o Bildung, o caráter formativo
da nossa nacionalidade por intermédio da análise da literatura. De outro, há uma
via que finca raízes na lingüística, na semiologia in nuce, na ciência positiva do século XIX e mais tarde no Estruturalismo,
que se preocupa com os aspectos imanentes da arte, e que nos deu os jogos florais
e formais de toda essa poesia de véu e grinalda feita nas últimas décadas. Em decorrência
disso, ora fazemos da literatura um mero instrumento que expressa uma hipotética
essência (a nacionalidade), ora a tomamos nela mesma e reduzimos seu sentido a um
enunciado discursivo (a linguagem), em contraste com o “mundo”, que confesso francamente
não ter a mínima ideia do que venha a ser. Isso demonstra que as duas grandes diretrizes
do pensamento e da produção poética estão concentradas na dualidade Forma versus
Conteúdo. No seu livro Fogo nas Cartas,
você diz que a poesia, mesmo sendo intransitiva, é filha da alteridade. Essa definição,
além de ser muito bonita, parece negar de saída essas ambigüidades falazes. Como
você se posiciona diante dessas questões?
FM Tua leitura é cristalina
e incontestável. Quem primeiro me chamou a atenção para isso foi o Roberto Piva.
Não podemos nos tornar reféns ou cúmplices dos crimes de lesa pátria ou língua.
A rigor, a poesia é a contestação desses conceitos. Há um aspecto aparentemente
negativista na poesia, o de recusa essencial. Mesmo a afirmação é uma negação, e
isto porque ela parte do princípio de que algo deve ser contestado. Condição ambígua?
Não se trata propriamente de um sofisma. Não posso me pôr dentro da linguagem se
não estou dentro de mim mesmo, com as implicações naturais do cidadão que sou. Mesmo
que vivesse isolado do mundo, essa seria uma forma de relacionar-me com o mesmo.
Então não tenho como fugir de mim e de minha circunstância – por mais que o deseje.
É por isso que me refiro a muitos de nossos poetas como autistas. A pretensa autonomia
– ou voz própria, seja lá que nome se queira dar – é fruto não de isolamento, mas
de mergulho em todas as águas. A rigor não escolhemos o inferno onde queremos ser
Dante. Mas jamais chegaremos a gare alguma pela via inexpressiva de nossos poetas
incultos.
RP Você defende a união indissolúvel
entre a vida e a arte. Isso não pode gerar algumas dificuldades de avaliação da
obra artística e seu valor objetivo, na medida em que a liga de maneira muito direta
a seu criador e à sua biografia?
FM Não creio nisto. A biografia
de um poeta está intrinsecamente ligada a uma perspectiva de errância, do matutar
em peregrinação, de maneira que não vejo como dar à vida ou à obra uma dimensão
inquestionável. Os valores objetivos são um encargo da sociedade de consumo. A criação
artística possui um valor intrínseco, soma do objetivo e do subjetivo. É o retrato
falado de quem a cria. Prova maior do que falo a obtemos quando do encontro com
o autor de qualquer um desses versos anódinos que se publicam a rodo. Qual a biografia
possível dos poetas brasileiros, por exemplo, da minha geração?
RP Boa parte da nossa miséria
econômica deita raízes na e coroa a nossa dependência cultural. Mesmo assim, parece
que há cada vez menos debate artístico em âmbito civil, ou seja, motivado por projetos
impessoais e coletivos sobre a arte. Qual o seu diagnóstico da poesia brasileira
atual, com o perdão da amplitude do tema e da questão?
FM Não há perdão para a amplitude.
Não padecemos propriamente de uma dependência cultural nos moldes de uma invasão,
se cabe o termo. Há cultura suficiente no país para torná-lo uma grande nação. Eu
sempre penso no caso da música e me indago como é possível que o choro tenha se
convertido em algo de quase nenhuma percepção em nossa tradição musical. Ora, o
choro praticamente funda um legado essencialmente brasileiro. A bossa nova vem depois.
Mas claro, é música de branco universitário. Eu acho um absurdo que não se consiga
conversar com poetas brasileiros sobre música ou teatro ou cinema, por exemplo.
Que espécie de mundo à parte eles estão construindo? E mesmo sobre a matéria queimante
da poesia, raros cruzam os cercados dos lugares comuns, e alguns ostentam ainda
com peculiar parvoíce sintomas de obsessão enciclopédica. Ora, vivemos em um país
onde a miséria intelectual determina a miséria social. Bem podemos compreender todo
o despejar de preconceitos ou rejeições em torno de qualquer maneira distinta de
tratar do assunto. Para que fosse possível um diagnóstico teríamos que evocar toda
uma tradição fraudada, o que significaria revolver túmulos, reconsiderar decretos
de genialidade, rever diários de bordo etc., pois de outra maneira não alcançaríamos
uma justa relação entre passado e presente. Teríamos, enfim, que enfrentar um largo
processo de desmi(s)tificação. Acontece que os novos talentos são dados à luz dessa
deformação cultural, gerando um círculo vicioso que a ninguém interessa romper.
Não quero dizer com isto que padecemos de um mal incurável. Cabe, no entanto, lembrar
que somente através da revolta, da negação, da insubmissão, em relação a quaisquer
cânones é que encontramos uma razão de ser da poesia.
RP Pela primeira vez, desde
a instituição da República, vamos ter um governo de esquerda gerido pelo maior partido
de esquerda do mundo. No que isso pode mudar o curso do Brasil e dos países dependentes?
Você arriscaria alguma opinião sobre a América Latina?
FM Tenho a impressão de uma
dádiva queimante. Um grande dilema da América Latina tem sido a recusa a entender
que a solução encontra-se em casa. Este é nosso maior desafio. Não vejo isoladamente
o assunto como de ordem política. Caberá ao novo presidente o que sempre coube a
seus antecessores: buscar vínculos substanciosos, que não sejam regidos apenas por
uma falácia de crise. Não arrisco opinião alguma. Afirmo um caminho que já trilho
com meu trabalho. Mínimo sinal, mas que considera uma relação continental até então
inexistente. O mundo deixou-se tragar pela falácia econômica, sempre cartorial,
onde a ameaça terrorista possui até um dado positivo, que é o de nos despertar dessa
hipnose estatística. Mas não cabe apelar a uma antevisão agora. Há muito o que ser
inicialmente conversado. Lula naturalmente tem suas prioridades. É aguardá-lo, antes
de qualquer outra coisa.
[2003]
[Entrevista
concedida a Rodrigo Petronio. Originalmente publicada em Agulha Revista de Cultura # 32. Fortaleza/São Paulo, janeiro de
2003. Integra o livro O hábito do abismo (Entrevistas com Floriano Martins),
de Márcio Simões (ARC Edições: Fortaleza, 2013).]
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