Há uma sintomática impressão que há mais poetas do que leitores. Não pelo
fato dos poetas continuarem desempregados, sem importância para uma sociedade que
cultua outros valores, mas, e principalmente, porque os leitores começam a desaparecer.
Uma frase rebuscada, uma palavra que não se escute na televisão e já não há mais
leitores, por sua vez, a poesia navega numa longa estiagem de pouca criatividade
ou descoberta. Mas quem se preocupa com isso? Quem se deteria a ler uma matéria
sobre poesia se há os seios de Carla Perez e da Xuxa para se pensar? É melhor se
deleitar na ode dos simulacros do que na aridez e tragédia dos poetas.
Talvez isso justifique que raros poetas não permitam
a completa extinção da espécie. Floriano Martins é um desses raros escultores da
palavra. Um poeta atento e ético, apegado desde cedo à leitura; a uma descoberta
do mundo pela formalidade e criação da linguagem. Em seu novo livro Alma em chamas, uma obra que levou dez anos
para ser construída, Floriano revela o zelo com a linguagem, comportamento típico
de um diletante profissional.
A poesia não pode ser considerada sua morada, pois
o poeta vive de aventura, de caminhadas por mundos recônditos e íntimos. Alma em chamas revela uma aventura em reconstruir
a visceralidade da escrita poética, fugindo dos temas conjunturais e penetrando
em problemas da linguagem e do homem moderno.
E se você leitor conseguiu atravessar esses íngremes
parágrafos, dê chance a você mesmo, leia algo desinteressante como poesia, como
a entrevista que vem logo a seguir. Assim, quem sabe, a gente passa a deixar de
lado tanta coisa que interessa, mas que não tem a menor importância. [EN]
EMMANUEL NOGUEIRA Você teve desde cedo o contato com os livros e em seguida o distanciamento
da sua geração. Para o exercício do poeta é preciso esse isolamento do senso comum?
FLORIANO MARTINS Não sei se é necessário. Pode-se ter condições benéficas
ou não. Tudo depende muito de que circunstâncias vive a geração. Às vezes, se tem
a sorte de viver numa geração riquíssima e isso pode lhe trazer muitos benefícios,
mas também se tem verdadeiro empastelamentos, momentos de transição, então não há
muito o que oferecer. De qualquer forma as duas coisas são importantes: o distanciamento
teve uma importância pelo fato de ter permitido ler muitos livros e a minha geração
não tinha muito o que oferecer. A minha geração é dos anos 70, no qual vivíamos
toda aquela celeuma em torno da geração mimeógrafo, que é na verdade um brutal retrocesso.
Embora muitos críticos tenham ressaltado aquilo como um ponto a mais, um momento
de salto na literatura, na verdade tudo ficou empastelado. Passados mais de vinte
anos, percebe-se que não ficou nada daquela geração. Sabe-se que alguns nomes funcionam
como falsos mitos, mas em termos de obra literária não há nada de substancial originado
por aquela geração.
EN No seu caso o distanciamento e a leitura demarcaram uma trajetória importante
para o aparecimento do Floriano poeta. É possível ter uma ideia de que é feito a
textura da poesia. Ou cada poeta tem sua forma, seus mistérios?
FM A poesia é tão diáfana, que talvez a sua substância
venha exatamente dessa diafanidade, quase que
invisível, ininteligível, intocável. Essa é a sua grande substância. Mas é evidente
que vem também de leituras, vem de diálogos com o mundo, de experiências, mas nada
que possa pensar como sendo uma coisa sobre a outra.
EN No seu livro, Alma em chamas, qual a substância que o constitui?
FM O Alma em chamas
reúne todo o desdobramento do fazer poético que aprendi durante esses últimos anos.
Evidentemente essa obra não está aí no sentido de encerrar círculo ou ser testamento
poético ou coisa do gênero. Nesse livro eu jogo todo o manancial de experiências
que colhi durante esses anos, daí o fato de ser um livro não só extenso, mas complexo
na sua tessitura. Apresenta-se como cinco livros reunidos, mas pode ser lido como
um poema único, dividido em cinco capítulos e cada um abrangendo uma circunstância
diferente. Mesmo porque, por trás desses poemas existem sempre uma preocupação em
recuperar a linguagem poética no sentido de ligação com uma linguagem lírica e uma
linguagem trágica, o que, portanto, nos remete a uma recuperação da linguagem épica.
EN Quando você atesta que há complexidade inerente na tessitura desse livro
você está se referindo basicamente a que?
FM Me refiro àquelas duas coisas indissociáveis na poesia:
a forma e o conteúdo. Em “Alma em Chamas” há uma complexidade formal, no sentido
que o livro trabalha, em um mesmo capítulo, uma série de ousadias formais. Na mesma
composição de capítulo, você tem décimo, tercetos, sonetos, prosa poética mesclada
a diálogos; tem a presença de personagens; trechos confessionais; trechos líricos;
trechos de abordagens trágicas; trechos que lembram peças de teatro. Aliado a isso,
encontra-se também uma complexidade conteudística, pois, não há nenhuma abordagem
circunstancial sobre determinando assunto e sim todo um encadeamento de situações
que querem discutir a dimensão humana.
EN O tempo ajudou na arquitetura dessa complexidade, afinal, foram dez anos
mexendo, aprimorando, o fazer poético para que surgisse o Alma em chamas?
FM São acumulações de experiências, mas o livro não é
uma coletânea de textos soltos, escritos ao longo dos anos, como é, por exemplo,
a obra “Crisantempo”, do Haroldo de Campos. Na verdade foram poemas pensados numa
trajetória. Os três mais antigos foram publicados porque surgiram circunstâncias
editoriais que permitiram publicações em livretos individuais [que são os três últimos
trechos do livro], mas eles não foram pensados isoladamente, para posteriormente
constituir uma coletânea, uma miscelânea, que depois de montada você pode desvelar
uma poética. Pode-se perguntar: “por que tanto tempo?” Foi o necessário para se
chegar ao término dessa aventura poética.
EN Você faz uma crítica veemente à poesia brasileira, chegando a afirmar que
desaprendemos a fazer poesia? Você se refere a uma época específica ou é uma crítica
generalizada?
FM Abranger a literatura como um todo seria demasiado
extenso. Um dia estava lendo uma resenha do jornalista Nilton Santos, da Gazeta
Mercantil, na qual ele comenta nove romances que tinham sido publicados nos últimos
meses. A razão de juntar todos os livros numa única resenha, dizia o jornalista,
é porque nenhum deles mereceria uma resenha isolada. Existe tamanha fragilidade
na tessitura do romance que se faz hoje no Brasil que chega a preocupar os críticos
e até jornalistas.
EN Há alguma explicação para a ausência de criação na linguagem poética?
FM A grosso modo, não nascem bons poetas a cada dia,
nós ficamos muito aflitos, principalmente num final de século que somos tomados
por novas formas de tecnologia. Nos afligimos diante da história como se fôssemos
uma parte isolada da história, quando somos um todo. A história é um tecido único.
Assim é natural que tenhamos períodos de baixa, afinal, não surgiram poetas como
Eliot, Pound, Pessoa, aos montes. Vivemos um período de baixa e não se sabe por
quanto tempo isso dura.
EN Nessa sociedade que vive sob a égide do sucesso, parece que o poeta não
está mais desempregado, como em outros períodos, mas em via de extinção?
FM Vendo a produção poética pelo ponto de vista da necessidade,
diria que o poeta vive um feliz ostracismo e nunca como uma condenação. Evidentemente
que a poesia é absolutamente desnecessária. Só não sei até que ponto a necessidade
pode ser situada como algo positivo e a desnecessidade como um valor negativo. Acho
que o básico da discussão é saber até que ponto a necessidade é realmente o que
interessa. O poeta terá sempre que ser um arrimo de família, pela simples razão
de que poeta, a partir da descida em sua própria intimidade, sai estabelecendo elo
de ligação com a intimidade de toda a humanidade e é daí que ele pinça as coisas
trágicas. Enfim, as coisas que teriam que ser corrigidas. O poeta de volta da sua
viagem não traz nenhuma boa notícia, por isso nunca é bem recebido.
EN Falemos de sua aventura. De um criador que se define numa aventura estoica,
na qual a ambição é o reconhecimento de si mesmo. Qual o lugar do leitor nessa aventura.
FM Cabe ao leitor encontrar um lugar no interior da obra.
Aqui voltamos àquela velha questão: a título de que e para quem se escreve? Em função
do leitor, da mídia, de uma circunstância editorial? O que orienta essa escrita?
Acredito que se escreve em função de duas coisas: da vivência e da escrita.
EN Tem-se então que acrescentar aí um dado ético seguido de estético.
FM O poeta tem que ter um compromisso declarado com a
linguagem. O poeta não pode usar a poesia em benefício de uma outra situação. Se
você pegar qualquer escrita de um grande poeta, observa-se um diálogo com o mundo,
expressado e determinado a partir de uma linguagem, na qual pode-se observar todas
essas situações reunidas com muita coesão, sem preocupação de natureza moralista,
esteticista, as coisas funcionam como um todo.
[1998]
[Entrevista
concedida a Emmanuel Nogueira. Originalmente publicada no Caderno 3, do Diário do Nordeste. Fortaleza, 21/11/1998. Integra
o livro O hábito do abismo (Entrevistas
com Floriano Martins), de Márcio Simões (ARC Edições: Fortaleza, 2013).]
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