Registram nos últimos anos
os principais suplementos literários do país, já agora em Portugal e praticamente
em toda a América Latina, a presença constante e consistente de Floriano Martins,
poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, enfim, na feliz expressão de Uílcon
Pereira, uma “ilha de produção”. Nascido no Ceará, em 1957, após passagem por São
Paulo, Floriano vive hoje em Fortaleza, onde curiosamente acabou encontrando sua
melhor base logística, onde publica seus livros, irradia sua produção ensaística,
traduz e edita seu próprio jornal literário, O Resto do Mundo, sempre com matéria inédita de nomes que fizeram a
arte deste século, muitos até desconhecidos no País. [SC]
SÉRGIO
CAMPOS Nossa
história literária é marcada pelo fenômeno de contínua migração do artista norte/nordestino
para os chamados grandes centros culturais. Em seu caso deu-se exatamente o contrário,
pois se decidiu pelo isolamento no Ceará. O que o motivou? O eixo Rio/São Paulo
está saturado?
FLORIANO
MARTINS
A condição básica do poeta é a do exílio. As mudanças, embora menos que o canto
– onde o poeta melhor realiza suas viagens – também são essenciais. Nelas – levando
em conta que quase sempre são forçadas – se fundem riqueza espiritual e sofrimento
pessoal. Quando deixei São Paulo, vindo residir em Fortaleza (embora tenha nascido
aqui, sinto-a cada vez mais distante de mim), o fiz movido, muito mais do que pela
falência do mito migratório a que você se refere (mesmo concordando nisto que você
chama de saturação), pela necessidade de uma nova mudança em minha vida. De uma
maneira geral, residir em Fortaleza é o mesmo que em qualquer outra cidade brasileira
(além de que vale notar que não sou exatamente o tipo de sujeito que mantém relações
afetivas com esta ou aquela cidade – na verdade diria que sou um caramujo, ando
sempre com a casa às costas), a diferença que a vida que levo aqui me permite maiores
condições de dedicação à Literatura. Há também que acrescentar que tal residência
proporcionou meu reencontro com o poeta-editor Lauro Maciel Jr., com quem tenho
trabalhado, nos últimos três anos, na edição de livros e do jornal Resto do Mundo.
SC Por seu exaustivo trabalho
de pesquisa e revelação da poesia latino-americana, pensa que é possível afirmar
que a poesia brasileira esta defasada e estacionária em relação à de outros países,
como o Peru o México e a Venezuela e outros menos conhecidos ainda? Em caso positivo,
a que atribui tal fato?
FM A diferença reside fundamentalmente
no aspecto da leitura. Não nos esqueçamos: um escritor é fruto de suas leituras.
De uma maneira geral o universo de leituras (principalmente relativo à poesia) do
escritor brasileiro é limitado, restrito. Pior: viciado em suas limitações. Repleto
de justificativas que vão da proliferante falta de edições à transferência, para
o âmbito político, de certas circunstâncias de caráter unicamente estético.
Se pensarmos em alguns poetas brasileiros, tais como
Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Manoel de Barros, Francisco Carvalho,
Santiago Naud, Sebastião Uchoa Leite, Sérgio Lima, sem nos determos em delineamentos
geracionais, veremos que tais poetas são tão fundamentais como José Lezama Lima,
Pablo Antonio Cuadra, Octavio Paz, Vicente Gerbasi, Gonzalos Rojas, Enrique Molina,
Javier Sologuren, José Emílio Pacheco, José Kozer, entre muitos outros. Contudo,
não há fluxo entre a poesia brasileira e a dos países hispano-americanos. Os poetas,
no geral, se desconheceram e se desconhecem entre si. A coisa se complica se pensarmos
que sequer há trânsito livre entre a poesia que é feita unicamente nos limites territoriais
deste imenso País. Apenas provoco a ira demente do leitor ao citar nomes do quais
ele nunca ouviu falar (quando ouviu jamais leu um único verso).
Vejamos um raciocínio corrente: se nossas livrarias
não dispõem das edições da poesia de Murilo Mendes ou Jorge de Lima; se não lemos
dois exemplos fundamentais de nossa poesia: Dimensão
das Coisas (Edições UFC, Fortaleza, 1962), de Francisco Carvalho e Pedra Azteca (Ediciones Mester, México, 1985),
de José Santiago Naud; se desconhecemos a obra ensaística de Sérgio Lima (qualquer
julgamento crítico com um mínimo de decência a situaria ao lado da de Paz, Barthes,
Sontag), por que então deveríamos conhecer nomes como Vicente Gerbasi, Javier Sologuren,
José Kozer, entre outros? Raciocínio invalidade pelo fato de que conhecemos (há
edições, o que pressupõe haver leitores) Hans Magnus Enzensberger e Bertold Brecht,
embora não conheçamos Holderlin, Trakl, Benn, Celan. Lembremos que não há edições
brasileiras de poesia de franceses como André Breton, e Antonin Artaud; italianos
como Eugênio Montale e Pier Paolo Pasolini; britânicos como George Macbeth, Ian
Hamilton e A. Alvarez; romenos como Lucian Blaga, Lon Barbu e Virgil Teodorescu;
espanhóis como Jorge Guillén, José Maria Valverde e Luís Feria; portugueses como
Alexandre O’Neill e Mario Cesariny de Vasconcelos; húngaros como Attila József e
Lajos Kassák; etc. E note que todos esses autores (e a lista poderia crescer facilmente)
são de importância capital para a poesia de seus países. Com relação ao modernismo
hispano-americano, para um outro exemplo, desconhecemos a obra de todos eles: Rubén
Dario, Amado Nervo, José Juan Tablada, José Martí, Ramón López Velarde, José Asunción
Silva, José Maria Eguren, Leopoldo Lugones… Tamanho descalabro, Sérgio, é praticamente
irrecuperável. Caberia a nós, poetas, estarmos promovendo a entrada de toda esta
poesia em nosso País. Contudo, temos que reconhecer que somos muito poucos os que
verdadeiramente estão envolvidos nesta tarefa de proporções arqueológicas.
Os reflexos disto são o mimetismo reinante (em face
de um modelo supostamente apresentado como o ideal, em função da falta de uma multiplicidade
de leituras) e o consequente e constante retrocesso a estéticas vencidas.
Por último, e creio que respondendo à sua pergunta,
citaria o nome dos peruanos César Moro, Javier Sologuren, Carlos Germán Belli e
Mirko Lauer; dos mexicanos Marco Antônio Montes de Oca, Eduardo Lizalde, Gerardo
Deniz e José Emílio Pacheco; dos venezuelanos Juan Liscano, Rafael Cadenas, Alfredo
Silva Estrada e Eugênio Montejo; todos poetas absolutamente fundamentais, cuja poesia,
se relacionada com a brasileira (embora insista nas exceções: Francisco Carvalho,
Santiago Naud, Sérgio Lima), evidencia o caráter estacionário e defasado desta última.
Mas é preciso que se acrescente que o Brasil vem
de muitas décadas em um franco processo de autodestruição, que abrange desde a precariedade
de nosso sistema educacional até o fato de exportamos a quase totalidade daquilo
que produzimos, passando pela atual desfuncionalidade de nossa recente Constituição
e pelo tráfico de drogas e crianças. Elementar, portanto, que a Literatura também
sofra tais danos, e que sua autoflagelação não tenha bases em um ceticismo radical,
extremo. Creio que ironicamente o Brasil entrará na história (se é que um dia entrará)
pelo extermínio da própria história, da noção de.
SC O virtuosismo linguístico
ou revelação irônica dos limites da linguagem (no dizer de Malcom Bradbury, falando
de Joyce) justificaria uma poética cifrada pela incomunicabilidade? Ou pensa, como
Eco, que nenhum escritor escreve para si próprio, mas para um leitor-modelo? Nesse
caso, qual seria seu leitor arquetípico?
FM Uma coisa não elimina a
outra. Não acredito que se possa escrever com vistas a este ou aquele tipo de leitor
(ainda mais se tratando de poesia, onde praticamente e cada dia mais escrevemos
unicamente para poetas), e sim apenas escrever. A leitura (esse ritual canibalesco
e que também implica revelação e comunhão) é uma consequência da escritura (no caso
da poesia melhor diria uma eventualidade), e não seu fim. Escrever para um leitor-modelo
(mesmo que esse leitor-modelo seja o próprio autor) é diagnosticar o fracasso da
escritura poética. Não nos esqueçamos que a poesia não é somente um meio de expressão, mas também uma atividade do espírito. Conquista do maravilhoso,
fonte de conhecimento, iluminação em estado puro, a poesia define-se afinal por
uma verdadeira avidez pelo desconhecido, exaltação perene do assombro de viver.
Por ser a mais intensa aventura do espírito humano, nela se definem amor e liberdade,
fundem-se visível e invisível.
Quanto à revelação irônica dos limites da linguagem,
esta não implica incomunicabilidade. A poesia se comunica através da emoção e não
da decifração lógica de seus códigos verbais. Há tanta emoção na leitura de Mallarmé
e Girondo quanto na de Celan e Borges. A incomunicabilidade de um poema está evidentemente
pautada pela sua incapacidade de desperta emoção em quem o lê.
SC Com George Steiner, Rimbaud,
Lautréamont e Marllamé, ao tentarem realçar o caráter fluido e provisório da língua,
na realidade não teriam contribuído decisivamente para o declínio de sua força vital?
Não terá a mídia reduzido a linguagem verbal a cacos e estereótipos para uma futura
arqueologia do consumo? Seu verso “arrasto comigo os destroços daquilo que sigo
dizendo” tem algo a ver com esse fato?
FM Acaso entre os monturos
de nossa civilização já não nos deparamos com o arquejo arqueozoico da arqueologia
do consumo? Certamente que aí nada será encontrado além de um ovo dentro de outro
ovo. Assim como os poetas, não podemos ser incriminados por termos socavado entre
escombros à procura de uma nova língua. Vejamos uma digressão. Após perseguir por
incontáveis eras a figura de um velho cujo rosto atormentado se instalara em seus
sonhos, Zig-Muth, o bárbaro clone, finalmente o encontra e de imediato desperta
de sua obsessão milenar pelo disparo de uma arma contra seu peito. Unkas recolhe,
anos depois, a estranha confissão do velho que exterminara Zig-Muth: “somente no
passado poderemos ser felizes”. Nos tais cacos e estereótipos a que você se refere
talvez ironicamente resida a única possibilidade futura de comunicação da espécie
humana.
SC Sua poética se caracteriza
pelas cosmogonias, grandes espaços em que você projeta seres fáticos (o bandido
Boca Mole), fictos (o enigmático Barbus) ou da ficção tornada histórica (Unkas),
tornados translúcidos por feixes metafóricos ininterruptos. Você concorda com essa
acepção? Você habita o universo desses seres e suas épicas malditas? Comanda-os
ou é por eles comandado?
FM O ato de criação para mim
está ligado ao mais intenso delírio da lucidez. Instante em que as imagens encarnam.
Os seres que você fala eclodem sempre em um estado que se poderia chamar de visionário,
em que eles próprios vão se fazendo, em que sou uma espécie de suget de suas emanações, que se irradiam
a partir de imagens pipocando nas ruas, recortes de revistas, músicas que ouço dia
adentro, moinho de carnes do amor, sangria desvairada da memória, leituras, cinema,
conversas, insinuações, brechas no corpo-mundo que me habita. Desta maneira vieram
a mim Boca Mole (um bandido que identifica o crime como a arte mais bela), Barbus
(sim, o enigmativo “vagabundo cósmico” inominável, “alma do mundo”, o ocultado ser do discurso), Unkas (catador
de lixos da linguagem, caçador de signos decompostos, último de uma raça, paródia
de si mesmo), outros mais. Contudo, meus versos (e somente neles tais seres existem)
são o foco central de minhas experiências. Através deles – intensificação de mitologias
pessoais – investigo as coisas que me cercam. Lembro-me aqui de Barthes, ao concluir
tão lucidamente que a função fundamental do discurso (poético) é “conceber o inconcebível”.
SC A partir de seus versos:
“em tudo o que somos é a perda que se afirma”, “o tempo é a única ruína absoluta”,
“a felicidade implica um duro / aprendizado no sentido de se perder / coisas – de
se desfazer delas”, pode-se falar de sua poética como uma poética da perda?
FM Melhor diria: poética movida
pelo paradoxo de que perda é ganho. O paradoxo na visão de Kierkegaard: o salto
extremo (mortal) de uma margem a outra. Fluir e refluir constantes. Como se a origem
do texto (corpo, mundo) fosse delineada por sua perda. Busca, e não encontro, [de]
sua pedra de toque. Novamente em Barthes: “O eu que se aproxima do texto é já em
si mesmo uma pluralidade de outros textos, de códigos infinitos, ou mais exatamente:
perdidos (dos quais se perde a origem)…” Visão extrema do paradoxo: a poesia não
pode ser lida pela primeira vez; somente admite releituras.
SC Em certo ensaio, como nos
conta, Sarduy se referiu à colmeia de metáforas de Góngora como a metáfora ao quadrado.
Sendo ela a pedra angular de sua poesia, atribui-lhe natureza ôntica ou a utiliza
como elemento psicológico de efeito encantatório?
FM Notemos que em Góngora há
um pleno domínio de significantes. Ali o som, a beleza e o esplendor formal apresentam-se
como dominantes. Já em minha poesia o sentido tem o mesmo grau de importância que
a forma, ambos se apresentam de maneira indissociável. No que diz respeito às metáforas,
o que há com esses “feixes metafóricos ininterruptos” é um jogo de paisagens sequenciadas
(de certa forma frustradas por ali não poderem ser simultâneas). Eu gostaria de
dar a elas um nível tal de flexibilidade que pudessem ser lidas sem que esta ou
aquela fosse pinçada por uma escala de valores. Todas aquelas peças que compõem
a sinfonia-livro estão ali, sendo esta a única essencialidade delas. Lembro-me aqui
de José Kozer, este imenso poeta cuja obra estou antologiando, ao dizer que não
se sente escrevendo um livro de poemas e sim poemas, poemas, poemas. Quanto a mim,
sinto-me exatamente ao contrário, sempre a escrever livros, o que confere portanto
natureza ôntica a todos os meus versos.
SC Partindo, apenas para ilustrar,
dos exemplos de Valéry, Burroughs ou Sabato, e na condição de poeta, tradutor, ensaísta,
artista plástico e homem de ideias, pensa que seja essencial a um escritor um completo
profissionalismo, ou basta-lhe o atributo do talento?
FM Lembro que professar que dizer confessar, e não creio que a arte esteja ligada a isto. Arte não é confissão
pública de um ofício. Em meu caso específico: sou essencialmente poeta; e todas
as demais atividades intelectuais que desenvolvo faço-o a partir deste dado fundamental.
Traduzo primordialmente porque a tradução permite uma leitura em profundidade, conduz
a uma plena identificação com o texto alheio (inclusive abolindo tal fronteira),
intimidade mais intensa que a provocada pela simples leitura; meus ensaios (neste
caso nos referimos mais às entrevistas, daí que prefiro chamá-los apenas escritos,
anotações) são frutos de que criação e reflexão são operações convergentes, estreitam
a máxima cumplicidade, de tal forma que não consigo vê-las dissociadas; e com relação
às minhas collages, diria que elas estão
mais ligadas à condição de poeta que de artista plástico. Não creio seja essencial
a um escritor um completo profissionalismo nem que lhe baste o atributo do talento.
O verdadeiro artista define-se por um obstinado rigor, que deve lhe acompanhar a
vida inteira, sempre disposto a negar-lhe o direito à linearidade e a descobrir
novas vozes dentro de si. Tenho sido autodidata em todos os sentidos, aprendizado
solitário mas sereno em seu bojo, serenamente rigoroso.
SC Tomando apenas como referência
os conceitos de tradução/transcrição, ou “transcriação”, qual é, como tradutor,
seu modelo operacional? A poesia é traduzível?
FM Tradução implica transferência,
o que sujeita o texto-fonte (em meu caso: o poema), no trajeto de uma a outra fronteira
verbal, a um recolhimento de certas impurezas. Na lapidação de suas citações interiores
temos que recorrer ao que se costuma chamar de recriação; e re-criar implica falsificar.
Na misteriosa passagem de Serpii vin sa bea
cenusa ta bolnava para as serpentes vêm
beber tua cinza enferma, há tanto expansão como perda. Por um lado o verso do
romeno Virgil Teodorescu multiplica o alcance de sua influência; por outro, sente
estilhaçar-se a plenitude de seu ser. Esta inabalável ambiguidade caracteriza a
operação tradutória. Lembro aqui que o poeta mexicano Eduardo Lizalde inclui em
seu mais recente livro (Tabernarios y Eróticos)
uma seção de traduções de poemas de Dante, Blake, Benn, Joyce, entre outros, a que
acertadamente intitula Baixa Traição.
Creio que não importa se a poesia é traduzível ou
não, e sim que, ao traduzi-la, o prazer da linguagem reside exatamente em sua falsificação.
SC Diz Beckett nas primeiras
linhas de O Inominável “O que é preciso
evitar, não sei porque, é o Espírito do Sistema” (grifo meu). Você adota uma estratégia
peculiar para cumprir, ao mínimo necessário, a ritualística da sociedade burguesa?
Que resultados obtém?
FM Beckett também nos diz que
“a busca do meio de fazer cessar as coisas, calar sua voz, é que permite ao discurso
continuar”. Não posso deixar de lembrar que nossa crítica literária continua nos
devendo um ensaio em que se estude as aproximações entre Beckett e Clarice Lispector.
Após esta mínima digressão, creio que melhor responde à sua pergunta esta extensa
citação do poeta colombiano Alvaro Mutis: “A poesia é um exercício para condenados.
Os poetas transitam pela rua com o rosto e com os gestos dos demais transeuntes
e só assim sobrevivem; porque se se vestissem com o traje de amianto e fósforo que
lhes corresponde, as pessoas fugiriam a seu passo e o pavor reinaria ao seu redor
como uma luminosa coroa justiceira. Os poetas entendem esta situação e aceitam a
penosa carga deste mimetismo humilhante. Mas resta uma zona onde esta condição de
vida assinalada pelos sete dedos da lucidez, da beleza, da ira, da intemporalidade,
do sonho, da morte e do amor, é inocultável. Esta zona a constituem as palavras
do poeta, sua visão e seu trato com os demais condenados”. Tenho tomado para mim
estas palavras, desde o primeiro instante em que as li.
SC Desde a adolescência me
impressiona Truffaut ao dizes que um seu personagem, tendo levado um amigo ao aeroporto
em noite de chuva, e sucumbido num desastre, morrera de GENTILEZA. Há semanas, lendo
Hanna Arendt a propósito da fuga de Rosa Luxemburgo de Berlim, vejo que, entre outros,
seu companheiro Jogiches negou-se a partir afirmando que “alguém tem que ficar para
escrever todos os nossos epitáfios”. No mundo selvagem e perverso em que vivemos,
o ser humano é uma espécie em extinção?
FM O homem rompeu o mágico
elo entre vida e morte. Estilhaçou os bagos da memória. Negociou sua alma como futuro.
Usou a adaga de sua ignorância para cegar todos os espelhos. E agora vaga em pleno
deserto urbano, assediado pela bárbara fantasmagoria de seus atos, atormentado pelos
rombos em suas camadas de ternura, prazer e delírio. Em nome do progresso mais destruiu
que ergueu. Guerras, abortos, confiscos, trapaças, atentados, têm sido seu manjar
predileto por toda a eternidade. Contudo, o homem tem sido sempre uma espécie em
extinção. Recupera-se aqui e ali. Entra em acordo com seus fantasmas. Oferta novos
sacrifícios ao Deus-progresso. De maneira que não creio que esta seja nossa última
descida aos infernos.
SC De acordo com Baudelaire
o poeta é o melhor dos críticos. Concorda em que a crítica de poesia deveria ser
exercida unicamente por poetas?
FM Entendo a crítica como acréscimo,
jamais como supressão. Um exercício constante de averiguações em torno ao texto-fonte,
exercício este que gera suplementos, ressonâncias, um caudal inesgotável de relações
sugeridas/provocadas pela repetição. Porém, uma coisa é a crítica e outra o crítico.
Já lhe disse que acho a critica uma atividade indissociável da criação, de maneira
que é sempre preferível que ela seja exercida pelo escritor, principalmente no caso
da poesia, em que só o poeta, como bem nos lembra Eliot, sabe que há sempre algo
“que deve permanecer sem resposta, por mais completo que seja nosso conhecimento
do poeta”.
SC O que poderia dizer-nos
sobre sua notável epígrafe: “O século XX não dará no XXI”.
FM Duas coisas: que me é cada
vez mais impressionante como sempre vivemos À sombra do mito da renascença: paralisados
por um estado de transição permanente; e que prefiro que os poemas falem por si
mesmos, com sua voz própria.
[1989]
[Entrevista
concedida a Sérgio Campos. Originalmente Publicada no SLMG – Suplemento Literário do Minas Gerais. Belo Horizonte,
07/10/1989. Integra o livro O hábito do
abismo (Entrevistas com Floriano Martins), de Márcio Simões (ARC Edições:
Fortaleza, 2013).]
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