RODRIGO DE SOUZA LEÃO Você acaba de lançar um livro de entrevistas com escritores latino-americanos.
Qual a importância de ouvir as vozes da poesia latino-americana?
FLORIANO
MARTINS
Trata-se de um livro de diálogos com poetas latino-americanos. Este é o primeiro
registro em livro de um encontro assim tão amplo entre estes poetas. A maioria nem
se conhece entre si, sobretudo os brasileiros. Nosso conhecimento da poesia hispano-americana
é grosseiramente limitado. A razão de um diálogo não é exatamente a de se saber
quem é o mais importante ou quem antecede quem neste ou aquele assunto. O diálogo
radica justamente na troca de experiências. Trata-se tão-somente de ouvir o outro.
Claro, esta audição implica sempre um sentido crítico. No caso da poesia latino-americana,
creio que a importância maior de se ouvir essas vozes vem do fato de podermos descortinar
um mundo até então desconhecido. Reunir, como fiz, 24 poetas de dez países em um
mesmo lugar de encontro, cumpre o papel de apresentar ao leitor uma nova maneira
de observar o fato poético na América Latina. A partir daí é possível entender que
esta poesia não se limita àquelas circunstâncias mínimas equivocadamente delineadas
pela crítica ou por nossa falta de programação editorial.
RSL O que não pode faltar
em uma entrevista? O que busca saber do entrevistado?
FM Obviamente, uma comunicação
fluida entre as duas partes que a compõem. Uma entrevista falha quando o entrevistador
não possui uma carta de indagações ou quando o entrevistado desanda a esquivar-se
a todo instante. Enfim, quando não há compromisso, de um lado ou de outro, com a
integridade do diálogo. Evidente que há alguns casos de inexpressividade, mas não
é disto que tratamos. De minha parte, entrevisto pessoas a partir de um plano de
trabalho, de maneira que o que busco saber de um entrevistado é justamente sua relação
intrínseca com o que faz. Também busco uma cumplicidade na tessitura de um texto
final, de maneira que a entrevista (diálogo) resulte em uma espécie de ensaio a
quatro mãos.
RSL Quanto tempo levou para
realizar este seu trabalho? Quais foram as maiores dificuldades?
FM A publicação de Escritura Conquistada (Diálogos com Poetas Latino-americanos)
funciona como a primeira colheita de um largo plantio, que atravessa a contagem
de uma década. Ali há entrevistas realizadas entre 1988 e 1996. Contudo, antes já
realizara algumas outras não incluídas neste volume, assim como sigo preparando
novas. A intenção central é a montagem de um vasto painel crítico em torno da poesia
latino-americana em todo este século. Além das entrevistas, há o preparo paralelo
de duas outras instâncias: uma Antologia da Poesia Hispano-americana no Século XX
e uma seleção de ensaios sobre esta mesma poesia. Claro, a partir daí surgem inevitáveis
desdobramentos. Exemplo disto é o libreto Escrituras
Surrealistas (O Começo da Busca) (Fund. Memorial da América Latina. São Paulo.
1998) – um ensaio sobre o surrealismo na América Hispânica. Quanto às dificuldades
encontradas no preparo de Escritura Conquistada,
naturalmente contei com algumas inomináveis recusas por parte de poetas que não
quiseram ser entrevistados. Além disto, lamento a morte prematura do excepcional
poeta chileno Enrique Lihn (1929-1988), cuja entrevista seria algo indispensável
para este livro. Contudo, sua grande dificuldade foi de natureza editorial. O livro
passou por várias editoras, situação que me parece absurda, dada a indiscutível
sugestibilidade do trabalho em si.
RSL Como foi o processo de
escolha dos entrevistados para o livro?
FM Sendo um livro que vem a
partir de um projeto mais amplo de difusão da poesia latino-americana, a seleção
de autores entrevistados buscou tanto uma abrangência do maior número possível de
países assim como destacar a importância desses poetas no universo literário de
seu país. Em um primeiro momento, como já disse, reuni dez países. Agora estou trabalhando
no complemento deste painel iniciado em Escritura Conquistada. Cabe aqui uma digressão
interessante. Quando tive recentemente uma breve conversa com alunos e professores
na UnB, um professor nicaragüense indagou-me por qual razão havia incluído no livro
um “poeta de direita” como é o caso, segundo ele, de Pablo Antonio Cuadra. Disse-lhe
da absoluta inconsistência de seu enfoque, uma vez que não relevo a política e sim
a poética. Neste território sagrado é indiscutível a contribuição de Cuadra (1912),
que renovou todo um cenário literário em seu país, seja na poesia, no teatro ou
no ensaio.
RSL Qual foi o entrevistado
mais arredio? Teve alguma decepção? Um poeta ou escritor que se revelou aquém de
suas expectativas intelectuais?
FM A leitura do livro mostrará
que os verdadeiros poetas não se furtam ao diálogo. Não há, portanto, nenhuma passagem
em que se verifique uma postura arredia. Conversamos claramente sobre os diversos
assuntos colocados em pauta. Tomei o cuidado de fazer com que, de alguma maneira,
todos participássemos do livro como um todo. Neste sentido, teci uma extensa rede
de citações, um entremeado de referências que iam ligando cada entrevista às demais,
repetindo propositadamente algumas indagações, buscando um entrelaçamento das diversas
opiniões, para que assim o livro tomasse uma consistência maior. Não houve, como
indagas, decepção alguma. O livro está repleto de notáveis satisfações. O crítico
espanhol Jorge Rodríguez Padrón me escreveu dizendo que tracei “um panorama da poesia
menos habitual, e portanto da mais necessitada de leitura”, completando: “para que
vejam os experts que nem tudo começa e acaba nos quatro de sempre”. Este feliz espaço
de comunhão, por assim dizer, não teria mesmo como permitir a decepção.
RSL Qual a diferença de uma
entrevista por e-mail ou carta e a cara a cara?
FM Não há diferença alguma.
Tudo irá depender sempre da postura das duas partes envolvidas. Evidentemente que
há sempre uma possibilidade de maior reflexão no texto escrito, ao contrário do
imediatismo da resposta falada. Por outro lado, há aqueles que defendem que no primeiro
caso se perde a espontaneidade. Não creio que o leitor sério esteja interessado
apenas na espontaneidade de uma entrevista. A mim interessa sobretudo a reflexão
que ela possa propiciar. Mas isto também se pode conseguir em uma entrevista ao
vivo.
RSL Os poetas têm espaço devido
na mídia?
FM Jamais terão. Há uma incompatibilidade
clara entre a Poesia e toda forma de massificação de valores. Nem creio que seja
exatamente a este tipo de situação que os poetas aspiram. Claro que tua pergunta
indaga mais sobre o reconhecimento público do trabalho poético. Mesmo aí, quando
observada melhor a circunstância em que se dão algumas evidências, compreendemos
que sua raiz não é justamente a do reconhecimento, mas antes a do manejo hábil com
a matéria em questão. De uma maneira geral, a mídia não pode mesmo esboçar reconhecimento
algum pela Poesia. Nem mesmo é esta sua tarefa usual. A Poesia implica concentração,
recolhimento, iluminação, ao passo que a mídia tem-se mostrado empenhada na dispersão
e distorção de valores, ou seja, é mero obscurantismo.
RSL Qual é o melhor caderno
cultural brasileiro?
FM Seria irresponsável uma
resposta tão a seco, e nada traria de construtivo a essa discussão. Em um país imenso
como o nosso, devemos observar também aqui com uma lente mais ampla. Há os jornais
que circulam em todo o país, ao mesmo tempo em que aqueles de circulação restrita
à região em que atuam. Entre eles muitos possuem suplementos culturais. Cada um
a seu tempo, dentro das circunstâncias da empresa jornalística a que estão vinculados,
buscam realizar um trabalho digno. Para não deixar de mencionar nomes, posso citar
alguns destes suplementos: Pensar, do Correio Brasiliense (DF), Cultura, do Jornal
da Tarde (SP), Prosa & Verso, de O Globo (RJ), A Tarde Cultural, de A Tarde
(BA), Viver, do Diário de Pernambuco (PE), Sábado, de O Povo (CE). Não há importância
alguma em se discutir qual seja o melhor. Antes importa assinalar que uma distorção
conceitual entre cultura e entretenimento faz com que alguns suplementos culturais
mais se pareçam com os chamados cadernos de variedades.
RSL Quem é mais importante:
o poeta Floriano ou o jornalista?
FM Não existem essas duas figuras
ou quaisquer outras. Sou essencialmente poeta. Não sou jornalista de profissão.
O trabalho jornalístico (artigos, resenhas, entrevistas etc.) surge como uma opção
de reflexão crítica em torno da produção cultural de meu tempo.
RSL Como surgiu o poeta? Quais
são as suas influências?
FM Poetas surgem do nada, de
um mesmo magma escaldante de onde surge todo artista. Da plenitude negra do mistério.
Não surgem essencialmente de textos ou desejos alheios, embora se alimentem de ambos.
São naturalmente a grande soma de todas as vertigens, porém só firmam sua voz ao
distingui-la das demais. Há um elo mágico entre o poeta e a biblioteca. Não a biblioteca
imaginária, mas antes a real, que é composta de suas leituras, de suas identificações.
Poetas herdam sempre algo de perdido. São uma invisível ponte entre as inúmeras
instâncias imperceptíveis do cotidiano. Pegam, escutam, cheiram, ouvem, vêem. Claro
está que minha poesia encontra-se impregnada de todas as substâncias que compõem
os sentidos humanos. Posso particularizar algumas identificações – a exemplo das
canções interpretadas por Agostinho dos Santos, Dolores Duran ou Nat King Cole,
que meu pai ouvia durante minha infância; minhas leituras das tragédias de Shakespeare
e alguns romances de Dostoievski, sobretudo Crime e Castigo; ou mesmo a paixão que
me despertaram pouco depois as obras de Goya, Dürer, Velázquez, Brueghel e Bosch
–, mas a verdade é que essas identificações não funcionam em isolado, nem tampouco
podem dispensar a vivência humana, ou seja, o entremeado de sentimentos de que somos
feitos.
RSL Como é o seu processo
criativo?
FM Já os poemas não surgem
do nada. Têm sua origem em algo bastante concreto: a busca de identificação do criador
consigo mesmo – isto evidentemente não quer dizer a tessitura de uma camisa-de-força
da egolatria – e não se realizam senão na condição de objetos de linguagem. Interessa-me
unicamente uma escritura de exceção. Não creio em arte de escolas, assim como desprezo
os epigonismos de toda ordem. Não se pode criar nada sem que se imponha alguns desafios.
Toda a discussão atual em torno de pós-isto ou aquilo não justifica senão uma debilidade
estética contagiante, o mesmo que essa obsessão pelo resgate de alguma instância
perdida. Passado ou futuro devem ser guiados por princípios mais sugestivos. O processo
criativo de um poeta não justifica a qualidade de uma obra de arte. Apenas ilustra
seu entorno. Há os que escrevem mascando cravo, os que se encharcam de uma droga
qualquer, os obsessivos pela realidade, aqueles cuja pena é movida unicamente pelas
desventuras amorosas, os que não dispensam a presença de um metrônomo etc. Tudo
isto ajuda a compor a mitologia em volta do poeta. Não mais que isto.
RSL Você vive de literatura.
Conte-nos um pouco.
FM Francamente, não sei de
onde se tirou esta ideia. É verdade que não tenho uma profissão paralela (funcionário
público, professor de curso de letras, redator publicitário etc.), porém crio uma
série de afluentes que ajudam a regar o trigo e a cevada. As opções foram por instâncias
que funcionassem como desdobramentos de um universo poético já bastante definido.
A partir daí firmam-se os trabalhos de pesquisa, as traduções, os ensaios, os textos
críticos para imprensa etc. Porém este conjunto de ações implica uma série de riscos.
O mais acertado, ao menos no momento, seria dizer que estou vivendo de riscos.
RSL Os grandes polemistas
morreram. A polêmica morreu. Faz falta?
FM Não creio nesses obituários
inconseqüentes. É claro que estamos nitidamente enfrentando uma entressafra, sobretudo
de valores. Ao mesmo tempo, somos avassalados por alguns impérios parasitas de meros
catalogadores de plantão. A polêmica pertence ao reino do diálogo e não da exposição
barata de preconceitos ou à vulgaridade da espetacularização das fraquezas humanas.
Em uma época em que a transgressão tornou-se uma falácia banal, o polemista pode
naturalmente ser confundido com o moralista, o conservador, o careta. Possivelmente
esta confusão terá alguma participação em uma característica bastante peculiar de
nossa sociedade contemporânea: a inação. Vivemos em um estado pleno de diluição
de valores, onde passado e futuro não se tocam, pela simples razão de que não há
compromisso com o presente. Vivemos em um estado de congelamento da história. A
humanidade posta em freezer. Não é exatamente o polemista que faz falta. Faz falta
essencialmente recuperarmos nossa vontade de viver.
RSL Por que a crítica literária
migrou para as universidades? Qual a importância da teoria literária?
FM Não vejo isto exatamente.
Ao que parece estamos de volta ao universo da mera catalogação. Claro que há uma
ambientação acadêmica algo rançosa que empobrece toda discussão crítica. Poderíamos
chamar a isto de síndrome do viés, aquela retórica risível da “questão de… passa
por”. Contudo, há uma forma inteligente de discurso, sobretudo quando busca fundar-se
no diálogo, no exercício de abrir-se à experiência alheia, à voz do outro. Pode-se
dizer da universidade que tenha erguido muros que a impedem de relacionar-se com
o restante da comunidade que efetivamente a sustenta. Por outro lado, escritores
também são dados a fundar guetos, ao mesmo tempo em que igualmente perderam um norte
crítico, no caso acentuadamente autocrítico. O que um perde acaba sobrando para
que a outra faça dele o pior uso.
RSL O Nordeste produz uma
poesia de qualidade. O que falta para torná-la ainda mais conhecida? Como vê a internet?
FM Não me agrada o que há por
trás disto de se dizer que o Nordeste produz uma poesia de qualidade e que não é
conhecida ou reconhecida. Isto pode conduzir àquele nocivo sentido do pária sem
fundamento, do enjeitado, do ‘tadinho’. Sem falar nos riscos de um redutor ideário
regionalista. Creio que é bem conhecida a poesia de João Cabral de Melo Neto, Gerardo
Mello Mourão ou Sebastião Uchoa Leite. Se há casos de desconhecimento ou falta de
reconhecimento, isto não se dá exatamente pelo fato de se ser nordestino ou sulista.
Quando surgem compilações da poesia de Joaquim Cardozo ou Raul Bopp tudo nos parece
um espanto. E quase nada sabemos da poesia de Henriqueta Lisboa, Augusto Meyer e
Américo Facó. Isto se dá, antes de qualquer outra coisa, pelo simples fato de que
o país se desconhece a si mesmo. E não me refiro unicamente a (falta de) atitudes
governamentais. Somos dados a transferir responsabilidades. É nossa herança cabralina.
Adoramos mandar ou por a culpa nos outros. Governos devem cuidar de um mínimo de
administração pública. Poetas, de um mínimo de administração poética. E há também
papéis fundamentais a serem desempenhados por editores, críticos literários, jornalistas
etc. Se tudo é bem comum, então cuidemos de cada coisa com igual zelo. Nossos governos
são tristes e não trocam uma lâmpada de praça sem interesse próprio. De uma certa
forma, os poetas brasileiros também agem assim. Enquanto não aprendermos a ouvir
o outro, nenhuma internet nos salvará.
RSL Qual o futuro do objeto
livro?
FM Creio que a melhor felicidade
que se pode alcançar em um livro é a da identificação com seu universo. Descobrir
afinidades entre si e a leitura de um livro é um momento de extrema grandeza. Assim
o é com qualquer outra forma de convívio, de doação, de diálogo. Não entendo porque
nos preocupa tanto o futuro do objeto livro e não mencionamos o futuro de nossa
própria humanidade. O livro não é determinante desta e sim o contrário. Se mantivermos
uma garantiremos a perenidade do outro, assim como de quaisquer objetos que sejam
sua expressão verdadeira. Toda discussão fora deste plano me soa como um catastrofismo
vulgar.
RSL Você detectou inveja no
meio literário e mostrou isto através de um ensaio. A inveja tem cura? Neste mesmo
ensaio você pede união. Isto é possível?
FM Naquele meu artigo (“A inveja,
essa Ibijara”, publicado no suplemento Sábado,
do jornal O Povo, em 11/01/97, e que estou
recolhendo agora em livro) denunciei a presença da inveja e da presunção como duas
gritantes características negativas do cearense. Isto reflete uma baixa cultura
e uma carência alarmante de auto-estima. Naquela ocasião me escreveram algumas pessoas
dizendo que estas não se tratavam de características essencialmente cearenses. Isto
é claro, porém entre nós elas são por demais imperativas. A inveja é um desejo desmedido
pelo que nos é alheio. Só se justifica, portanto, em quantos não se conhecem a si
mesmos. A presunção, por sua vez, é uma forma de desprezo pelo alheio, justamente
por falta de autocrítica. Em um caso cobiçamos aquilo que não sabemos ao certo se
temos ou não, enquanto que no outro nos supomos aleatoriamente superiores, sendo
ou não. Daí que nossa grandeza é a medida do que se tem e nunca do que se é. Nisto
de adorarmos o alheio, acabamos não identificando nossos reais e vitais valores
e só os reconhecemos em segunda mão. Se há cura para a inveja? Esbocemos uma aparente
digressão. Há pouco tempo, uma campanha movida pelos Correios em Brasília fez com
que os carros parassem diante das faixas de pedestre. Uma outra campanha reduziu
bastante o cruzamento indevido de sinal vermelho em Salvador. Talvez pudéssemos
descobrir uma maneira de fazer com que cearenses reduzissem o volume da música em
sons de carro, bares etc. Assim como candangos ou baianos, cearenses precisam ser
ensinados a ouvir o outro. A cidade de Fortaleza é uma cidade imperativamente ruidosa.
Como sabemos, o ruído interfere na comunicação. Talvez esta tenha que ser nossa
grande campanha, a de redução do ruído a um nível aceitável, de maneira que a reabsorção
do silêncio nos ensine a percepção do que está dentro de nós e à nossa volta. Se
aparentemente embaralho os assuntos, isto se dá porque vejo todas essas coisas muito
interligadas. Se escrevo um poema, publico um livro, assino um texto na imprensa,
traduzo outro poeta etc., estas são formas de compromisso. Tenho que estar ciente
do que faço, assim como do que se faz ao meu redor. Não pode então haver espaço
para inveja, presunção ou qualquer outro aspecto redutor.
RSL Qual a principal característica
da poesia cearense?
FM Não há isto. Não há a “principal
característica” da poesia tailandesa ou da peruana. Devemos abominar toda forma
de regionalismos ou nacionalismos. A princípio, não há uma poesia cearense, mas
antes, bem antes, uma poesia feita no Ceará. O poeta está aqui, sendo ou não daqui,
identifica-se com esta ou aquela circunstância, nada mais. Basta imaginar dois casos
pertinentes: Gerardo Mello Mourão e Francisco Carvalho. O que ambos têm em comum?
Este tipo de falsa identificação pertence ao mundo escolástico, aos manuais ou cartilhas
similares. Há uma poesia sendo escrita hoje no Brasil que muito se assemelha a esta
ambientação retórica das cartilhas. Se observarmos bem, temos hoje uma poesia que
é refém absoluta de uma imagem. Costumo dizer, a título de boutade, que se tirarmos
o vaso de plantas da janela cai por terra grande parte da poesia que se escreve
hoje no Brasil. Além disto, perdemos o radical da identidade da voz poética. Se
embaralharmos os poemas em uma dessas ocasionais mostras em periódicos nacionais,
ninguém dará pela troca de autores. Não há mais voz poética, e sim uma mera articulação
de sintomas.
RSL Estamos além do moderno.
No pós-moderno, onde está a novidade? Qual a novidade?
FM Não, não. Não estamos além
do moderno. Já é um milagre estarmos nos mantendo na modernidade. Temos andado para
trás. A modernidade implica uma ampliação de diálogo. O moderno significa abrir-se
à compreensão do outro. Uma arte que seja mais abrangente, e que isto não se limite
a uma pecha meramente estatística. Creio que o Surrealismo – acima dos ismos de
quermesse – imprime o grande sentido de modernidade, na medida em que recusa toda
forma de catalogação. No entanto, a amplidão proposta pela modernidade desandou
em um desnorteamento, coincidindo com uma série de outras quedas de valores no decorrer
desta fatia final do século. Não há uma novidade propriamente dita, no sentido corrosivo
em que este termo se encaixa hoje. As verdadeiras novidades não se anunciam. Elas
vão se dando bem além de nossa conta. Quando leio um poeta como o irlandês Seamus
Heaney, vejo ali uma modernidade fundada justamente no diálogo que mantém com a
tradição, no caso a literatura celta. É preciso entender que a modernidade não é
um caderno de receitas. Não vamos alcançá-la recortando o verso segundo orientações
terceiras. O moderno será o reflexo de nosso diálogo com o mundo. Não há novidade.
Nunca houve novidade. O que há são desdobramentos e não são visceralmente o cerne
da questão.
RSL O que mais lhe agrada
em um poema?
FM Semanas atrás, quando estava
em São Paulo, fui ver a estreia do filme Kenoma,
de Elianne Caffé. Saí dali irritado pelo fato de que apenas uma das partes havia
funcionado. É excepcional ver como o ator José Dumont extrai leite das pedras. O
mesmo se dá na encenação de Jeromy Irons na versão cinematográfica de Adrien Lyne
para o romance Lolita de Nabokov. Não
há soma, não há abrangência de recursos. Aspectos como roteiro ou definição de personagens,
isto nos parece não ir além de uma falácia ordinária. No entanto, não se pode sair
de uma sessão de cinema dizendo “oh que maravilhosa fotografia”, como uns hippies
abestados ecoavam ao final dos anos 70. Se leio um poema e tenho a impressão que
a ausência de José Dumont ou de Jeromy Irons pode liquidar com seu valor aparentemente
intrínseco, então não estou lendo nada. Não se trata de uma demagogia da forma,
mas antes de uma essencialidade de valores constitutivos de uma expressão artística.
Então o que me agrada em um poema é sua completude, sua ousadia por abranger, a
um só tempo, as inúmeras estações de que é feito.
RSL Qual o papel do ensaísta
para a literatura?
FM Suponho que indagues pela
função da crítica. Neste sentido, prefiro valer-me do que já havia dito em um artigo
meu justamente sobre a crítica literária no Brasil, publicado no jornal O Povo (15/03/98). Assim começava aquele
texto: “Disse Heine que o historiador é aquele que profetiza o que já aconteceu.
Borges nos lembra que é desta difícil arte de adivinhar o passado que surgem as
histórias da literatura. A estimativa do valor de uma obra não pressupõe um equívoco.
O crítico espanhol Jorge Rodríguez Padrón refere-se à revelação de uma 'quietude
sacramental' que centraliza toda inquietude da escritura poética como sendo o 'ofício
sagrado' da crítica. Ou seja, não uma crítica que domine (detenha) o sentido de
uma obra, mas que o habite, que se permita fazer parte dele. Não há a determinação
do sentido e sim sua celebração. A crítica literária não pode aspirar a ser uma
sentença. Trata-se, a bem da verdade, de um exercício de perplexidades. O crítico
tem que descobrir a mesma trilha singular do objeto de sua crítica. Seguir as pistas,
investigar ideias, formas, técnicas. Em última instância, estabelecer um diálogo
com o texto.” Eis o que penso.
[1998]
[Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão.
Originalmente publicada na revista eletrônica Balacobaco,
setembro de 1998. Disponível para consulta em: www.gargantadaserpente.com/entrevista/florianomartins.shtml.
Integra o livro O hábito do abismo
(Entrevistas com Floriano Martins), de Márcio Simões (ARC Edições:
Fortaleza, 2013).]
Nenhum comentário:
Postar um comentário