JOSÉ ÁNGEL LEYVA
Comencemos por el poeta Floriano Martins, un cosmopolita en su Aldeota, Fortaleza,
donde reside para dispararse incesante al mundo de los cibernautas. En esa perspectiva ¿qué significa
novedad para Floriano?
FLORIANO
MARTINS
A novidade é uma colheita, ou seja, há que plantá-la. Mas é também uma colheita
do espanto, pois o que mais me atrai nela é sua capacidade de surpreender. Para
tanto, é preciso estar conectado ao mundo com todos os sentidos, entregue a essa
permuta de alta voltagem do espírito que a vida nos ensina a viver. Curioso é que
a mídia, que mais afirma interesse na novidade, esteja sempre amparada no
estabelecido. Inclusive o que ali se apresenta como novo é sempre uma diluição,
do ponto de vista estético, sempre um retrocesso, uma máscara, uma fraude. Evidente
que a viagem pela Internet permite o encontro com inúmeras formas da novidade.
Mas há que saber navegar, sempre. Há que saber navegar…
JAL Reconoces en tu
escritura poética el embelezo por el discurso surrealista en lo que a la estética
se refiere. Muchos poetas influenciados por ese ismo han negado su participación
e influencia, incluso el haber pisado alguna vez sus terrenos. Tú no sólo recorres
dicho territorio sino que exploras su subsuelo en América Latina. ¿Puede decirse que insistes
en cultivarlo? ¿por qué?
FM Incontáveis motivos: as imagens
cortantes, vertiginosas, estimulantes; o caráter da escrita; a atenção pelos grandes
abismos da realidade; a percepção intensa de um sentido de recusa; a incessante
aventura exploratória dos mistérios que definem a existência humana; o diálogo audacioso
com os lugares comuns… Evidente que a relação com o Surrealismo não pode se restringir
ao ingresso em uma formação grupal. Eu já vivi uma experiência de grupo e ela foi
algo desastrosa, porque há filamentos da ortodoxia que se enredam na prática das
relações. Mas observemos como certa indeterminação, no que diz respeito à afinidade
de alguns poetas e artistas com o surrealismo, esteja ligada mais a um sentido de
oportunismo do que propriamente a um questionamento adequado. O que em muitos casos
poderia ser uma crítica consistente em relação às falhas eventuais – e sabemos que
elas são inúmeras –, acaba por se transformar em um jogo desqualificado de egos
indomáveis. A percepção do Surrealismo no continente americano tomou um caminho
algo distinto, sobretudo considerando o fato de que a estadia dos franceses (sempre
capitaneados por Breton) nos Estados Unidos e no México esteve pautada pela formação
de um gueto, uma espécie de colônia europeia, onde o francês era mantido como língua
única. Uma contradição com a ideia de Artaud ao considerar o surrealismo como uma
“nova espécie de magia”, ou da esperança – que acabou sendo frustrada – de César
Moro, de que se tratasse de uma “cita de las tormentas portadoras del rayo y de
la lluvia de fuego”.
JAL Empleas la imagen
del espejo para indicar la insensatez del hombre ¿Qué ves ven esas criaturas? ¿Su
engañosa figura endiosada o su camino inevitable hacia la muerte?
FM O que o espelho reflete de
cada um de nós nem sempre está visível em nosso próprio entendimento do ser. Se
as relações humanas foram se tornando um quase inquebrantável jogo de aparências,
isto se deve ao fato do homem haver tecido um abismo entre imagem e identidade.
Para reconhecer a si mesmo é preciso agora deformar espelhos? Mas quem diabos é
esta criatura que a todo instante se evita e cobra identidade apenas nos demais
da espécie? Estas são leituras clássicas da poesia em todos os tempos. Mas quem
garante que o homem em nossos dias esteja interessado em refletir (sobre) sua humanidade?
O fato de havê-la perdido, já nos dá a resposta. Por outro lado, o que tem feito
a arte – quando o faz seriamente –, senão põe o homem diante de um espelho? Talvez
o homem mereça mesmo o estado em que chegou, e não esteja mesmo interessado em quem
se preocupe com essa humanidade perdida, cuja relevância jamais percebeu.
JAL ¿Qué le preocupa
al poeta Floriano: la muerte o la palabra muerte?
FM Preocupa-me esta separação
que tua pergunta sugere, como se acaso uma coisa fosse a experiência de vida e outra
a linguagem. Ruína ou pesar, essa entidade é parte de nossa vida no momento mesmo
em que a iniciamos. Consciente ou não, está presente em nós. As crianças não têm
consciência da morte nem da linguagem. Qual dos dois choques de consciência será
mais determinante na vida delas? Não será um único abismo? Os poetas desafiam a
morte ou a palavra morte? E por onde se alastra o conceito de morte? Considerando
certa primazia do domínio da linguagem, descartando sua relação intensa com o viver,
eu diria que estamos nos afastando tanto da morte que um dia ela não será mais do
que uma palavra. Então já estaremos demasiado mortos para perceber o equívoco em
que nos metemos. Por outro lado, o que tem feito o homem em prol da palavra no sentido
de que a mesma o salve de si mesmo? São questões filosóficas, no geral. No livro
de registros de uma delegacia de polícia a situação é outra. A rigor o homem chegou
a uma dicotomia grosseira: autor e vítima do mesmo crime. A criminalidade tornou-se
um dado assustador e determinante de nossas vidas – não me refiro simplesmente ao
jogo passional dos disparos, mas a uma sofisticação que envolve tanto corrupção
quanto pedofilia. Nada mais débil hoje em dia do que a ideia de um transgressor.
Evocar a transgressão é não conhecer os códigos em que essa linguagem atua. Como
é possível dizer: ah tudo o que eu queria era um poema de amor? Então não
distingo uma coisa da outra, porque posso estar vivo ou morto pela palavra, e isto
não fazer sentido algum.
JAL ¿Qué papel desempeñan
en tu poesía la plástica y la música, ¿Cómo las incorporas o las refieres?
FM Talvez eu pudesse dizer que
se trata de uma questão de oportunidade, considerando o fato de que meus pais ouviam
muita música e que era igualmente intenso o acesso a edições de obras plásticas.
Mas o que havia de mais impressionante em casa, para uma criança, era a quantidade
de livros da biblioteca de meu pai. Então eu presumo que a diversidade com que as
coisas se apresentavam diante de mim tenha sido determinante. Mas claro que tudo
isso se encaixava em certa natureza insaciável, algo que segue caracterizando tudo
o que faço. O fato é que o mundo não nos absorve através do que lemos, mas antes
através do que ouvimos, vemos, tocamos, cheiramos, degustamos. A leitura – compreendida
em seu aspecto habitual – não é um dos sentidos humanos, mas sim a conseqüência
da atuação plena desses sentidos. Em grande parte a fixação dos intelectuais pela
leitura vem de seu temor de misturar-se à matéria queimante da existência. Quando
escrevo – e nisto é preciso que se diga que não penso senão raramente em um poema
em isolado – estou sempre imaginando toda uma plasticidade, dinâmica, argumento
etc. É como se me sentisse mais um dramaturgo do que propriamente um poeta. Imagino o poema-livro como algo que aja tridimensionalmente.
JAL Entre una poesía
del lenguaje y una poesía inquieta aún por el hecho mismo de la vida, más preocupada
por conmover, tocar al lector, es que advierto se mueve tu poesía. Quiero decir
que no es experimental hasta sus últimas consecuencias, no pretende el balbuceo,
el juego fonético o la segmentación semántica, sino que se desliza por una lógica
más o menos incluyente. ¿Qué
opinaría un surrealista de ello?
FM Muitos surrealistas diziam
– dizem ainda – que a poesia está em outro lugar. Mas qual seria este outro lugar?
Quantas vezes o estado de verdade imediata, defendido por Tristan Tzara,
foi além das obras de circunstâncias a que se referia André Breton? O primeiro leitor
que um poeta deve arriscar-se a tocar é ele próprio. É impressionante a quantidade
de poetas que andam pela vida sem se deixar tocar pela poesia. Apesar do surrealismo
a poesia continua sendo percebida como um jogo de palavras, apenas. Para mim, o
experimental não dissocia instrumento e sensação. Quando digo que o que nos impressiona
se imprime em nosso espírito isto não é de todo apenas um jogo de linguagem. Mas
é necessário que haja uma verdade nisto. Caso contrário, a comoção torna-se panfleto,
regra. O instrumento é um recurso. Entendemos bem quando o assunto é um piano. Ah
sim, trata-se de música… Mas quando o verbo está em questão… É a minha vida que
supera a escrita e nunca o contrário, por mais que eu tenha pleno domínio da linguagem.
JAL Tus poemas a menudo
se presentan como un panteón lírico, donde uno puede seguir puntualmente la huella
de tus afectos y tus influencias, o mejor digamos tus lecturas, no siempre vanguardistas.
¿Qué hay de cierto en lo que digo?
FM Não cabe essa distinção. Não vejo em que circunstância
a poesia não se identifique com o lírico. Claro que não me refiro a panteão, mas
antes ao simples ato da escrita. Estamos a conversar – o poema é uma forma de diálogo,
não? – com o que se passa diante (e dentro) de nós. Tivemos uma sobrecarga no que
diz respeito ao termo vanguarda e isto por vezes gerou um mal-entendimento do que
possa ser substancioso. O conceito de vanguarda foi tanto explorado que vive hoje
um desgaste excepcional. Mas há que entender que uma coisa é o recurso, o diálogo,
a caixa de Pandora, e outra a maneira como o objeto final, saído desse diálogo,
se apresenta. Da maneira como colocas a questão, há uma distinção fundamental em
termos de caráter da escrita no que diz respeito a sua estrita relação com quem
a escreve.
JAL Para darle paso
a otra temática, evoco la pregunta que te haces en un verso de tu poemario Alma
en chamas (Alma en llamas): “Qué hombre habita en mí?” ¿Tiene respuesta
esa cuestión?, ¿hay alguien diferente a Floriano que ocupa su existencia y dicta
su poesía?
FM Há inúmeros. Não diria que
propriamente distinto de mim ou que dite, em isolado, o que escrevo. Não creio em
voz própria que não seja a consonância de uma multidão de vozes. Algum crítico já
observou a condição sinfônica de minha poética e devo estar de acordo. Somos, ao
menos em parte, aquilo que nos consome. E pôr em dúvida o homem que lhe habita é
o mínimo que um poeta pode exigir de si antes de pretensamente declarar-se uma antena
da raça.
JAL Me has dicho, en
nuestras largas conversaciones por las calles y las playas de Fortaleza, que Brasil
sólo mira a Brasil, asombrado, quizás, por su propio gigantismo geográfico o quizás
confuso por su enorme y bello mestizaje. Tú mismo eres una muestra de que hay búsquedas
para tocar y ser tocado en y por el exterior. ¿Excepción o regla?
FM Em boa hora esta menção à
mestiçagem. A rigor sempre estivemos na alça de mira de uns obcecados pela pureza,
os tementes de todo tipo de miscigenação, racistas que buscam eliminar a fusão,
o encontro, o encantamento que somente o mergulho no outro propicia, e o fazem por
incompetência, por apego a uma condição mesquinha que nada tem a ver com o argumento
de defesa de uma cultura. O que há de mais forte na cultura brasileira está em sua
mistura, o que acaba por atropelar a muitos a quem simplesmente falta fôlego para
compreender o mundo em pleno torvelinho de experiências inesgotáveis. Não temos
problema de arritmia. O que temos é um excesso, de ritmos e deuses, cuja mescla
tempestuosa por vezes atordoa. Somos a terra plena do transbordamento. A ideia de
um gigantismo tem uma conotação dúbia: por um lado nos cega em relação às
afinidades culturais evidentes e por outro lado desperta certa inveja no tocante
ao que nos é aparentemente superior. Não é que só olhamos para nós mesmos. Muito
pelo contrário: somos cegos de tudo, inclusive de nós mesmos. Tudo o que era mais
visceral e sofisticado nas imagens poéticas de autores como Celso Luiz Paulini,
Claudio Willer, Rodrigo de Haro e, sobretudo, Roberto Piva, poetas identificados
como de uma geração dos ’60, por exemplo, nada foi percebido pela crítica, e isto
se deu porque essa poesia rompia com certo padrão de formalismo, sobretudo considerando
então a passagem de bastão da Geração de 45 para o Concretismo. Então não é nossa
mestiçagem que suscita uma confusão, mas sim a linha dura de um positivismo que
temos entranhado em nós, cujo beletrismo é apenas uma de suas facetas.
JAL Además de poeta,
traductor, ensayista y editor electrónico eres un fuerte crítico de la poesía en
tu país, el cual hay que reconocerlo posee una rica tradición poética ¿Qué rescatas
de esa herencia?
FM A ideia de uma tradição implica
em transmissão, em reconhecimento. Neste sentido, não se pode falar em tradição
lírica no Brasil, exceto se pensarmos na grande linha parnasiana que define toda
a nossa trajetória poética. Temos que pensar bem nisto. O formalismo ornamental
e edulcorado seria então a nossa tradição? Nas últimas décadas tivemos uns rapazes
que retalhavam a sintaxe, primavam pela incompreensão, simpatizantes da ruptura
a todo custo, inclusive a custo do entendimento dela própria. Ainda estão por aí
alguns desses rapazes. Não, não possuímos uma rica tradição poética. O que se passa
é que em alguns casos a poesia brasileira é melhor conhecida no exterior do que
em casa. Temos uma tradição outra, um rio subterrâneo que tem sido grosseiramente
desprezado. Talvez os mexicanos se lembrem ainda de José Santiago Naud (1935), cujo
livro Piedra Azteca teve unicamente uma edição mexicana (Papeles Privados,
1985). O próprio Jorge de Lima, para muitos a maior expressão poética do país, é
nome de pouca circulação. Ao contrário, abundam as louvações a poetas nitidamente
de segunda linha, como Mário e Oswald de Andrade. A melhor herança a ser resgatada
não é aquela que se detém em nomes, mas sim no caráter que a determina. A cultura
brasileira está muito perigosamente contaminada – o que se acentua mais e mais nos
dias de hoje – por um sentido muito particular de decomposição. Não se trata apenas
dessa avalanche de corrupção que a mídia anuncia a todo instante. Trata-se de uma
depravação de senso ulterior, estamos nos desfazendo por falta de acreditarmos em
nós mesmos. Estamos colhendo agora o fruto de toda uma história de falta de atenção
para o que verdadeiramente somos. Fazer a defesa agora de uma identidade cultural
– a despeito de toda a instância retrógrada que envolve o tema – é de um cinismo,
de um oportunismo descarado, coisa de gente que não quer senão seguir descarnando
o cadáver dessa cultura. Até o último instante, sem drama ou carnaval, quando então
se mudam todos para um outro paraíso fiscal.
JAL ¿Cómo se conforma
desde tu punto de vista la República de las letras (de la poesía) en Brasil?
FM Toda casta intelectual se
organiza sempre no sentido de cooptação com o poder. Tal concubinato fez de nossa
república das letras uma jovem senhora muito dedicada aos prazeres da carne, relutante
em considerar a existência do espírito. A ausência de uma tradição crítica – e refiro-me
não à crítica de circunstâncias, mas àquela área da percepção interessada em evidenciar
eventuais equívocos de um texto, propondo-se a iluminar suas zonas escuras, sem
uma determinação judicial que venha a eliminar a obra em questão por discórdia estilística
ou outro mazelo existencial qualquer –, pois bem, essa ausência, já clássica entre
nós, brasileiros, contribui para a persistência pasmada nos mesmos erros, em muitos
casos os mais primários.
JAL Sin ánimo de competencia
y de comparación, pero tomando en cuenta tu trabajo editorial y tu larga experiencia
como entrevistador ¿Cómo percibes el desarrollo de la poesía en tu país con respecto
al resto de Iberoamérica (incluyendo a Portugal y a España)?
FM Creio até que seria irresponsável
a comparação. Uma coisa é uma seleção de grandes poetas – e isto se pode achar na
Espanha, em Portugal, no Brasil e na América Hispânica (não esquecer que aí a aventura
teria que enveredar por 19 países, com suas peculiaridades magníficas). É bem provável
que os nomes sejam desconhecidos para além de sua restrita área de atuação. Ainda
que de gerações distintas, não creio que gozem do conhecimento internacional que
merecem poetas como José Ángel Valente (Espanha?), Luís Miguel Nava (Portugal?),
Roberto Piva (Brasil?) e Ludwig Zeller (Chile?). Outra coisa é acreditar que essa
resplandecente minoria possa vir a constituir uma competência. Uma característica
marcante do espírito dos poetas brasileiros, em linhas gerais, é o provincianismo,
e digo isto no sentido de que jogam muito com as aparências – da escrita e do caráter,
posto que separam uma coisa da outra. Isto faz com que se tornem reféns de uma compulsiva
novidade, que mudem de roupa (a linguagem, ah esse garfo e faca da linguagem!) ao
sabor do convite que recebem para um evento de turno. Há os que não, sim, há os
que não. Agora me lembro que antes de iniciarmos nossa conversa eu havia me decidido
a não citar nomes. Isto causa uma confusão medonha, porque somos propensos a nos
identificarmos com os personagens errados. Imagine se digo aqui um nome, por exemplo
Hilda Hilst (uff!, esta por sorte já morreu), e ela própria, sim, ela própria, não
entende que essa minha afirmação é uma maneira de me preocupar com algo que me é
afim… Chega de citar nomes. Todos são os brilhantes poetas que se imaginam ser.
JAL Por último. ¿Estás
convencido de que el proyecto Agulha, además de poner en contacto
a los escritores de América Latina y el mundo, pueda ser un factor de calidad y
avance en nuestras letras, digamos ¿una aguja sobre el globo de la complacencia
y la endogamia?
FM Não tenho dúvida alguma quanto
a isto. A leitura conjunta dos editoriais da Agulha aponta neste sentido,
confirmando a pauta abrangente que temos propiciado em 4 anos de atuação. Decerto
que temos um número de leitores que deve ser considerado. Contudo, pertencemos a
um mundo virtual, com suas rejeições da parte de uma realidade impressa que ainda
não percebeu que fere a si mesma ao nos refutar. Evidente que o que a Internet nos
propicia possui em si a mesma carga de ambigüidade que qualquer outro instrumento.
Sempre será possível salvar ou ceifar uma vida com a mesma arma.
[2004]
[Entrevista concedida a
José Ángel Leyva. Originalmente publicada em La Jornada Semanal. Suplemento cultural do jornal La Jornada. México, 10/10/2004. Integra o livro O
hábito do abismo (Entrevistas com Floriano Martins), de Márcio Simões (ARC
Edições: Fortaleza, 2013).]
Nenhum comentário:
Postar um comentário