CARMEN
VIRGINIA CARRILLO
O que é a poesia para Floriano Martins?
FLORIANO
MARTINS
Dizia o grego Embeiríkos que “a poesia é o desenvolvimento de sapatos engraxados”.
No mesmo poema dizia ainda: “esta excursão não tem fim”. De alguma maneira, toda
definição limita. A poesia se deixa encharcar de toda a matéria humana. O homem
a anuncia como o canto da gravidade, da vivência. Mesmo assim, como digo ao final
de um poema, “haverá sempre algo ali impossível de se seguir”. Portanto, melhor
será não defini-la, mas antes tomar-lhe o curso, vendo o que se aprende com ela.
CVC Quais são os autores que
mais influenciaram sua obra?
FM Não compartilho muito essa
ideia algo imprecisa das influências que, no caso de um escritor, sempre remete
a um plano literário. Compreendo que um autor tem por influência maior a própria
experiência de vida. Em meu caso, acrescentaria um diálogo que quase sempre estabeleço
com algum livro quando estou a escrever. Posso assim pensar em livros como The White Goddess, de Robert Graves, ou Le coupable, de Georges Bataille, ou Diario de muerte, de Enrique Lihn, ou O livro egípcio dos mortos, ou El blasfemo coronado, de Humberto Díaz-Casanueva,
que foram leituras que me acompanharam durante a escritura de alguns de meus livros.
Mas juntamente com essas leituras, posso também referir-me ao Paris Concert, de Keith Jarrett, ou aos carvões
de Goya, ou ao Joe's garage, de Frank
Zappa e a muitas canções de Tom Waits etc., mas com sinceridade não vejo ali o que
se poderia chamar de influência. Agora, como somos a soma de tudo o que fomos e
seremos, é natural que todos os poetas estejam em mim, sem que me caiba destacar
algum. Em todo caso, interessa o mergulho na existência humana, no grande tumulto
originário, alheio a todo tipo de identificações convencionais, literárias ou não.
CVC Qual relação você encontra
entre filosofia e poesia?
FM Não creio em nenhuma dessas
duas forças desgarradas de uma imanência que lhes é peculiar, ou seja, a relação
intrínseca que ambas devem ter com o homem e a realidade. Qualquer tentativa de
torná-las distantes dessa imanência, por exemplo, a redução a mera técnica (mística
ou poética), não consegue senão afastar o próprio homem de si mesmo. Mas tenhamos
em conta que poesia é criação, invenção, ao passo que filosofia é reflexão sobre
o criado ou seu desejo.
CVC O tempo e a memória são
dois temas recorrentes em sua obra. Você acredita que o tempo da escritura é um
tempo mágico que eterniza o assombro do poeta diante da vida, suas emoções, vivências
e ansiedades?
FM Não há propriamente um tempo
mágico. O que se poderia chamar de mágica é nossa relação com o tempo. E esta magia
tem que estar na carne daquilo que escrevemos, pois é afinal o que estamos vivendo.
Tal experiência pulsante, diária, não se separa de uma memória, seja do passado
ou do futuro. A escritura de um poema reflete a vida de seu criador, consequentemente
comporta tanto o sublime quanto o revés, de maneira que o assombro do poeta estará
ligado mais à capacidade de percepção da realidade.
CVC O crítico Rolando Toro comentou
que “seu projeto poético é subversivo, alheio aos valores convencionais”. Em que
medida a sua obra se revela contra a tradição poética do Brasil?
FM Há um componente metapoético
em minha poesia que a aproxima um pouco de autores como Jorge de Lima ou Dante Milano.
Trata-se de uma reflexão constante sobre o próprio pensamento poético, em meu caso
uma crítica à relação entre poeta e sociedade. Por outro lado, participam de minha
poética componentes da tragédia (personagens, diálogo, trama, coro), que lhe dão
uma peculiaridade dramática que não se observa na tradição lírica brasileira. A
subversão a que se refere Rolando Toro diz respeito a um vício formalista, beletrista,
parnasiano, que caracteriza a poesia brasileira, somente rompido em raros momentos
em toda a história.
CVC Você se considera um poeta
surrealista? Qual a importância da analogia em seu processo criador?
FM Devo aclarar essa questão.
Tenho com o Surrealismo uma relação entranhável, sobretudo se pensarmos em alguns
poetas hispano-americanos, a exemplo de Enrique Molina ou Ludwig Zeller, que sempre
me interessaram muito. Agora, não me considero um surrealista, e sim alguém que
chamou para si a defesa do Surrealismo, levando em conta que se tinha dele uma ideia
bastante distorcida em meu país. Além desse aspecto, não caibo nas classificações
habituais.
Já no tocante à analogia, é naturalmente a chave
de todos os conflitos que encarno em meu processo criador, as relações entre visível
e invisível, possível e impossível, mundo criado e mundo por criar. A analogia como
uma transgressão do facilmente perceptível, do que se mostra apenas em aparência.
Como destacou Rolando Toro, vemos em minha poética uma “linguagem que para viver
deve consumir seu corpo”. Em tal consumição reflete sobre as formas que encarna,
averiguando inferno e paraíso, Eros e Tanatos, todos os pares que conformam a grande
aventura humana, reconhecendo as semelhanças ocultas, restituindo o mistério da
imagem, uma mística profunda que transgride todas as leis de um pensamento lógico.
CVC De seus primeiros livros
de poemas à sua última produção poética houve alguma mudança estilística fundamental?
FM Naturalmente. Por muito
tempo confesso não haver encontrado uma voz própria. Tanto em forma como em conteúdo,
vivia um pouco à sombra de algo já escrito. Em um primeiro momento, escrevi muito
pautado pelo discurso, despreocupado com a forma. Logo me deixei influenciar bastante
pela Beat Generation e o universo dos
comics, mesclando essas duas leituras
em painéis que buscavam já alguma aproximação com o que escrevo hoje. Mas somente
a princípios dos 90 é que defini uma poética que fosse a grande soma de todas as
vivências e percepções, uma escritura polissêmica cuja complexidade estrutural não
fosse apenas uma articulação retórica, mas sim uma estratégia essencial à própria
resolução dos desafios impostos, definida por um sentido natural de abrangência
de códigos, quase uma volúpia da escrita.
CVC Quando e por que motivo
surge seu interesse pela literatura hispano-americana?
FM Vem originalmente da curiosidade
que logo vai se mesclando com uma indignação. Ao ler o prólogo de uma edição da
Obra Completa de Vallejo vi ali menção
a dois ou três outros poetas que eu desconhecia. Ao procurar pistas me deparei com
vários, o que me foi levando a averiguações cada vez mais intensas, até que se descortinasse
diante de meus olhos um mundo completamente outro, fascinante em sua raiz e desdobramentos.
Desde então persigo um encontro possível entre essas múltiplas poéticas que constituem
a América Latina.
CVC Como se vê no Brasil a poesia
hispano-americana atual?
FM Sigo lamentando que não
se veja no Brasil a poesia hispano-americana, a menos que importe falar de iniciativas
isoladas ou de algum exercício tradutório entre jovens poetas. Em um plano editorial,
não se leva em conta, em meu país, a existência de uma poesia hispano-americana.
Raramente surge alguma edição, desprovida de qualquer caráter programático que nos
faça acreditar na existência de um diálogo entre duas culturas. Reflexo disso é
que criamos um entendimento desnorteado do que seja a poesia na América Hispânica.
Caso recente é o de fascínio de alguns poetas brasileiros pelo que se chama de neo-barroco
(ou neobarroso, como preferem), o que
se justifica apenas em função de ignorância nossa em torno dos grandes postulados
poéticos de gerações anteriores.
Como o Brasil encarna uma vez mais o mito beletrista, com todos os vícios formalistas
que o caracterizam (em qual outra tradição poética seria possível o Concretismo?),
o que percebemos da atual poesia hispano-americana é justamente aqueles acentos
que facilmente identificamos como um retrocesso em uma densa e iluminada tradição.
[2002]
[Entrevista
concedida a Carmen Virginia Carrillo. Originalmente publicada na revista Orpheu Digital # 7. Porto Alegre,
janeiro de 2002. Integra o livro O hábito
do abismo (Entrevistas com Floriano Martins), de Márcio Simões (ARC
Edições: Fortaleza, 2013).]
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