Ele largou a escola aos 16
e nunca mais entrou em uma sala de aula. Independente por vocação, jamais colocou
os pés numa universidade: estabeleceu para si próprio um rigoroso projeto de estudo,
enquanto devorava toda a literatura que podia encontrar pela frente. Autodidata,
o ensaísta, poeta e tradutor cearense Floriano Martins, 42 anos, tem hoje um generoso
currículo de publicações nos principais países de língua hispânica. Colaborador
sistemático de jornais e revistas literárias da Espanha e América Latina, Floriano
diz construir seu nome à margem das “igrejinhas intelectuais cearenses”. Nesta entrevista
ao Sábado, ele justifica sua fama de polemista
e enfrenta a unanimidade de meio mundo das letras ao sol. [LN]
LIRA NETO Você sempre optou por uma
carreira literária à margem das principais igrejinhas literárias cearenses. O que
você lucrou, perdeu ou deixou de ganhar com este tipo de atitude?
FLORIANO MARTINS De uma maneira geral, não
tenho nada a reclamar do meu isolamento em relação ao chamado status quo da literatura cearense. Esse “isolamento”
foi necessário para a elaboração de dois projetos fundamentais: a definição de um
projeto poético e, sobretudo, de um projeto ensaístico, que demandam um tempo enorme
de trabalho e pesquisa. Além disso, minha natureza não é muito dada ao universo
de festejos a que está vinculado o poder literário. O que me soa estranho é que,
quando tento me posicionar a respeito de uma ou outra circunstância da literatura
cearense contemporânea, sou considerado “o magoado”, “o ressentido”, “o resmungão”,
“o provocador”. Mas eu mesmo busquei esse isolamento. Não me sinto alijado de coisa
nenhuma.
LN Foi justamente esse isolamento
em relação ao meio literário local que o levou a buscar outros interlocutores, a
travar esse dialogo com a literatura hispano-americana, por exemplo?
FM Se o objetivo fosse fugir
daqui, seria muito mais fácil pra mim buscar o dialogo com a literatura francesa,
inglesa ou norte-americana. Isso me facilitaria muito mais a vida. Mas fui mexer
justamente com o universo mais obscuro de todos, o da literatura hispano-americana.
Inquieta-me o fato de sermos absolutamente desconhecidos entre nós mesmos, apesar
de estarmos todos dentro do mesmo continente e termos sido vítimas do mesmo processo
histórico de colonização.
LN Qual a importância da poesia
latino-americana no quadro da literatura universal contemporânea?
FM Seja nos EUA ou Europa,
não há hoje exemplo de uma poesia tão renovada e reveladora quanto a hispano-americana.
Tanto temática quanto estilisticamente ali se produziu uma multiplicidade de vozes
que não encontra correspondência em nenhum outro círculo poético. E o pouco que
conhecemos caiu nas mãos de péssimos tradutores ou teve uma leitura descontextualizada.
Grave exemplo é o livro Pedra de Sol,
do mexicano Octavio Paz, um dos marcos da poesia hispano-americana, que foi criminosamente
depredado por um cidadão chamado Horácio Costa.
LN Quando não são depredados
são simplesmente ignorados…
FM É inadmissível que não se
encontre entre nós, por exemplo, a tradução da poesia de José Lezama Lima, embora
se comente muito sobre o barroco hispano-americano e até mesmo tenhamos inventado
um tal de “neobarroco”. Haroldo de Campos acredita ter escrito o que chama de um
“manifesto da estética neobarroca”. Ora, o barroco é a grande singularidade estética
da poesia hispano-americana, desde sua origem. Uma linha que vem do barroco ao surrealismo
– fortalecida pela supremacia da mestiçagem – define esta poesia de maneira notável
e transcendente. Não há “neobarroco”, a não ser como limitação, como uma das formas
de nossa obsessão escolástica. A poesia dispensa o “neobarroco”. Tal delimitação
pertence à vila dos acadêmicos e à horda anêmica de subpoetas que tanto prolifera
entre nós.
LN Atualmente, o escritor Bruno
Tolentino vem alimentando uma acirrada polêmica nas folhas dos principais jornais
e revistas brasileiras, ao tentar dessacralizar algumas unanimidades intelectuais
brasileiras. Você concorda com as teses de Tolentino?
FM Tolentino não passa de uma
estratégia autopromocional. É preciso ser ingênuo para não perceber isso. Bruno
não tem absolutamente nada a apresentar em contrapartida ao que reclama. Seus dois
livros de poesia, sobretudo o segundo, são lastimáveis. Mas o que interessa discutir
neste episódio é o quanto Tolentino conseguiu perturbar o cenário intelectual brasileiro.
Nisso, ele e suas polêmicas são saudáveis e trazem grande utilidade. Como quando,
por exemplo, conseguiu provocar – ou revelar – uma atitude extremamente baixa de
quem até então era um monstro sagrado, o senhor Augusto de Campos. Para responder
às provocações de Tolentino, Augusto gerou um abaixo-assinado ridículo, com assinaturas
de artistas e intelectuais a seu próprio favor. Isso, no máximo, só conseguiu mostrar
o estado de indigência em que o fundador do Concretismo se encontra. Ou pouco mais
que isso: revelou o estado da dependência intelectual brasileira em relação a nomes
intocáveis.
LN Recentemente, aqui mesmo
no Sábado, você assinou uma resenha crítica
pegando pesado na antologia Poesia Cearense
no século XX. Em entrevista na semana passada ao Vida & Arte, o escritor Assis Brasil (organizador da antologia)
rebateu de forma virulenta a resenha. Até que ponto seu artigo também não poderia
ser considerado apenas uma “estratégia autopromocional”? Você está querendo ser
o “Tolentino do Ceará”?
FM Há uma delicada diferença.
(Pausa longa). Do ponto de vista jornalístico, os dois fatos até não parecem diferentes.
Mas são duas circunstâncias. Reclamei, de forma objetiva, da falta de idoneidade
crítica, no preparo de uma obra que, de uma maneira ou de outra, define um perfil
da literatura cearense. Já Tolentino é apenas uma personagem de quermesse, de gincana.
Isso ficou claro desde o início, quando ele afirmou que traduzia melhor que Augusto
de Campos. Ele não reclamou de alguém por ser mal tradutor, mas disputou qualidade
de tradução. Se deu mal: apresentou ao público algo tão ruim como a tradução do
Augusto.
LN Como você classifica a reação
de Assis Brasil à sua resenha?
FM A reação de Assis Brasil
foi infinitamente menor de que a de Augusto de Campos. No entanto, posso afirmar
que as duas têm o mesmo princípio. Os dois são pessoas acostumadas a viver no Olimpo,
cercadas de bajuladores, onde ninguém os questiona de nada. Ora, o mais importante
para se manter o padrão de uma cultura é justamente o questionamento. Caso contrário,
cultura vira cristalização. E isso não interessa a ninguém.
LN Você tem preparada uma antologia
de poetas latino-americanos, intitulada Mundo
Mágico. Como antologista, que critérios adotaria para não cair nos “equívocos”
de que acusa Assis Brasil?
FM Toda antologia corre riscos.
No fundo, livros desse tipo acabam caindo na tentação de se basear em critérios
estritamente pessoais. Veja só: 75% dos poemas que Assis Brasil colocou na antologia
são sonetos, sua preferência em poesia. Só a título de exemplo: ele representou
minha obra com dois sonetos. E posso ser tudo na vida, menos sonetista. Outra falha
visível: o desconhecimento de seu objeto de pesquisa. Colocou por exemplo José albano
como parnasiano, tudo o que Albano não foi. Albano foi, na verdade, nosso único
grande momento simbolista. Entenda: não reclamo dos equívocos naturais e comuns
à maior parte dos antologistas. O que reclamo é do fato de Assis Brasil não ter
definido criteriosamente o que estava avaliando. É como se ele não soubesse realmente
do que estava falando.
LN E quem entraria em sua lista
de bons poetas cearenses?
FM A poesia cearense começa
pra valer com José Albano. Logo em seguida, há dois poetas que não podem ser esquecidos:
Edigar de Alencar e Sidney Neto, embora não tenham a mesma dimensão que Albano.
Mas creio ser indiscutível situar o Clã, na década de 40, como o ápice de nossa
história literária, mais especificamente na poesia. Posterior ou simultaneamente
a isso, nada mais, exceto as presenças isoladas de Gerardo Mello Mourão, Francisco
Carvalho e José Alcides Pinto.
LN Estes teriam livre conduto?
FM Sim, mas cada um tem lá
seus problemas. O carvalho repete-se muito, o que tem o peso de um grande desgaste
na leitura conjunta de sua obra. Quanto ao Alcides, sempre padeceu de uma oscilação
incrível. Mas acaso Drummond também não incorreu no desgaste da repetição, ao ponto
de diluir-se por completo em seus últimos livros? Outro autor que também considero
importante é Adriano Espínola, com seu Lote
Clandestino. Um livro que se insurge, com sua linguagem cosmopolita e uma notável
ironia, contra a estética do cangaço, contra essa obsessão cordelista, que impera
em nossa poesia, cujo maior prejuízo foi haver adotado Patativa do Assaré como uma
expressão poética nacional. A meu ver, o Adriano seria o único poeta de minha geração
que se deveria citar.
LN Você não considera extremada
a afirmação de que não tenha surgido praticamente nada depois do Clã? Em seu artigo
você afirmava, por exemplo, que não sobrou nada da Geração Siriará…
FM Insisto na mesmíssima pergunta
do artigo: o que deixou o tal Siriará, senão uma revista circunstancial em torno
de uma reunião da SBPC, uma peça de teatro também montada em torno da mesma circunstância
e, sobretudo, um manifesto que não se manifesta sobre nada? O que o Siriará deixou
de obra para que alguém possa fazer sua defesa? Absolutamente nada. O Siriará foi
outra circunstância autopromocional. Aquilo interessava a todos. É o mesmo caso
do grupo SIN. Alguém me responda: o que a poesia de Horácio Dídimo ou de Roberto
Pontes representa, pelo menos, no nível mínimo dos poetas municipais?
LN No final do ano passado,
uma antologia da poesia brasileira dos anos 60, organizada pelo cearense Pedro Lyra
e publicada no Rio de Janeiro, também rendeu alguma polêmica, pelo menos nas páginas
do Jornal do Brasil. Você conhece o livro?
FM Essa antologia do Pedro
Lyra peca na sua própria concepção, ao inventar uma geração que não existe. Certa
vez, para justificar a existência de um cidadão chamado Carlos Nejar, a ensaísta
Nelly Novaes Coelho referiu-se a uma suposta “Geração 60” . Essa coisa ganhou corpo e um
bando de gente que não tinha onde se meter na história da literatura brasileira
acabou tratando de arranjar seu lugarzinho nela. No grande prédio chamado Brasil
– e sabe-se lá quem é o síndico disso – exige-se carteirinha e crachá de acesso
para todo mundo. Inventam-se departamentos do nada, como essa tal “Geração 60” , que é o crachá que o Pedro
Lyra arranjou para entrar na literatura brasileira. Ele inventou um andar inteiro
no prédio para poder entrar.
LN O que significa sua afirmação
de que não existiu a “Geração 60” ?
FM A falha do Pedro é considerar
que a poesia brasileira se tornou outra após o golpe de 64. Isso é uma piada. A
nossa indigência cultural é muito anterior a 64. A gente vive querendo gancho
para alguma coisa e o golpe foi o gancho que arranjamos para justificar a inação
crônica da cultura brasileira. Recentemente, na revista da Academia Brasileira de
Letras, Domingos Carvalho Silva faz referência ao fato de que não existe geração
literária sem a presença de manifestos e inimigos literários. Assim, a Geração de
45 seria o último marco geracional da literatura brasileira, por mais que alguém
possa se insurgir estilisticamente contra ela. Carvalho Silva está certo. O que
põe por terra a tese de nosso Pedro Lyra. Uma tese acadêmica, que por sinal – é
bom que se diga – só não foi reprovada na banca da UFRJ por uma simples questão
de afeto. Ele passou raspando, com a menor
nota permitida para aprovação.
LN Você é um autodidata, que
aos 16 anos abandonou a escola e nunca chegou à universidade… Você considera que
por isso exista alguma lacuna na sua formação?
FM Pelo contrário. Ora, o grande
problema hoje é que a literatura foi tomada pela universidade. É isso que está gerando
uma série de equívocos do que de fato seja a evolução poética no Brasil. Os acadêmicos
estão criando uma leitura distorcida da realidade da literatura no Brasil. A universidade
é prejudicial à poesia.
[1996]
[Entrevista
concedida a Lira Neto. Originalmente publicada no suplemento Sábado, do jornal O Povo.
Fortaleza, 30/03/1996.
Integra o livro O hábito do abismo
(Entrevistas com Floriano Martins), de Márcio Simões (ARC Edições:
Fortaleza, 2013).]
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