O poeta moderno é perplexo
porque se tornou crítico, para além de ser um artífice da língua. Nem sempre escreve
apenas poemas, dir-se-ia, por vezes, também uma figura, cujo estatuto varia. Floriano Martins (Fortaleza, 1957) é essa
figura, nome que assina uma obra e que a obra constrói, mais do que o homem que
simplesmente a fabrica.
Autodidacta, iconoclasta,
desconcertante, resistente, poliédrico, o autor de Alma em Chamas (Letra & Música, 1998) exerce ainda as funções de
ensaísta, editor, tradutor, de Lorca a Cabrera Infante. Estudioso da literatura
hispano-americana, no domínio poético, especialista do surrealismo, sobretudo na
América Latina, dirige, com Claudio Wiiler, a revista Agulha, coordenando o projecto
Banda Hispânica.
Floriano Martins é, todavia,
sobretudo poeta. Poeta perplexo perante o estremecimento do mundo, em cuja escrita
se fundem géneros. Consciente da importância crítica da cultura enquanto compreensão
distanciada e, no entanto, acesa, o escritor de Estudos de Pele (Lamparina, 2001) veste a pele da astúcia ensaística
no seu caminho de palavras que trata como seres vivos. Sabe que nelas há uma força
não domesticada, maldita, privilegiando, no diálogo entre trevas e luz, as relações
de vizinhança, próximas ou dissemelhantes, com a arte dos outros. Proclama a máxima
surrealista, o autor de Sábias Areias
(Mundo Manual, 1991): “Quero que se calem quando deixarem de sentir”, sabendo que
a linguagem anuncia o mundo. Pensar o poema significa, pois, procurar que a memória
se transcenda num jogo entre imaginação e entendimento. [AMG]
ANA MARQUES GASTÃO Estudos de
Pele é o
seu mais recente livro de poesia. Pele do corpo, pele da página. Textos do corpo,
corpo do texto, da criação. Entre tudo o mais, dir-se-ia também uma obra sobre a
escrita, a linguagem, e ainda sobre a memória?
FLORIANO
MARTINS
Um livro mestiço. Em toda a criação não damos um passo sem a memória e a linguagem.
São aspectos intrínsecos, indissociáveis. Quanto à pele, sendo o que nos recobre,
pensamos nela apenas em sua exterioridade. Não a vemos como um conjunto de tecidos,
e menos ainda suspeitamos do que lhe passa por dentro. Isto porque caímos no ardil
de perceber o mundo de forma fragmentada, alheios às infinitas conexões existentes
entre os fragmentos. O livro se volta para este conhecimento, a identificação do
todo por meio do convívio com as suas partes, a busca dos elos entre elas.
AMG Estamos perante um livro polifónico que actua na reconstrução
de um mundo, sendo o seu conteúdo o imaginário poético encontrado entre o real referencial
e o discurso do fabuloso, do fantástico, do onírico, até do maldito?
FM O mundo que busca reconstruir
é justamente o dessa unidade perdida, porém sem saudosismo de espécie alguma. Neste
caso a polifonia é indispensável, bem como a presença desses discursos todos. O
imaginário, mesmo em sua conotação de ilusório, é real. Não faço essa distinção
entre uma coisa e outra. Somos também aquilo que sonhamos e desejamos. E dentro
dessa mescla não caberia esquivar-se do maldito. A perversão nos define, sobretudo
nas maneiras menos percebidas como tais. Basta pensar nas fábulas e nas cantigas
de roda, por exemplo. É uma estranha relação a que o homem mantém, tão íntima, com
as trevas.
AMG Entrelaça na sua obra delírio e lucidez, corpo e espírito. Quando
perguntaram a Max Ernst o que pensava de Kant, ele respondeu: “A nudez da mulher
é mais sábia do que o ensinamento do filósofo”. Poderia ter tido uma resposta tão
desconcertante como esta, ou não?
FM O desconcerto é um dom,
sim, porém causa hoje um efeito retórico, no sentido de que há uma hipocrisia reinante
que busca nele apenas um divertimento, a figura circense, engraçadinha, previsivelmente
“desconcertante”. Era outro o cenário em que agiu o Surrealismo dentro de tuas referências.
Equivalências? Teríamos que pensar na maneira violenta como a privacidade tem sido
assentada como uma mercadoria. E o que a filosofia e a arte têm feito a respeito.
AMG Referia-me também ao diálogo
que encontro na sua obra entre o pensar e o sentir, entre o ensaístico e o poético,
tendo em conta essa nudez a que se refere Ernst…
FM
São vasos comunicantes que estabelecem uma íntima relação entre arte e vida, desde
que não se comportem como se o pensar e o sentir estivessem desligados. Tampouco
o faço por puro modismo de quebra de barreira entre gêneros. Há muito empastelamento
anódino sob tal artifício.
AMG Pode entender-se Estudos
de Pele como um enredo ficcional, viajando entre os diversos géneros literários
(poema em verso ou em prosa, drama, ensaio…), em que as vozes das mulheres nos contam
como o mundo as abandonou e nos falam da possessão?
FM Foi pensado exatamente assim,
no que diz respeito ao primeiro aspecto de tua abordagem, ou seja, um enredo ficcional,
não linear, mesclando gêneros e técnicas e mesmo apropriando-se, ainda que raramente,
de algumas anônimas sutilezas alheias. Contudo, não se trata de livro atento apenas
às “vozes das mulheres”, mas sim essencialmente ligado à expressão do feminino,
à sensibilidade – essa metade arrancada de todos nós.
AMG Mas há uma intensidade que
se reflecte mais, a seu ver, no mundo feminino?
FM A grande violência advinda
deste aspecto se reflete na mulher, sendo ela quem a sofre de maneira mais intensa.
O livro dá às personagens femininas uma especial atenção – inclusive porque vem
delas uma réstia de sensibilidade que talvez se mantenha exatamente pela consciência
do padecimento. Essas mulheres, no entanto, desconhecem a raiz do sofrimento. Diferem,
sob este aspecto, das personagens femininas de um livro que está por sair, Duas
mentiras, onde notamos a presença não mais da perplexidade diante de tópicos
como crime, violência, dor, sujeição, mas sim entonações de sarcasmo, manipulação,
escárnio… Se observarmos bem, em Estudos de Pele, as figuras masculinas,
anônimas em boa parte do livro, mas identificadas em algumas passagens (Alfredo,
D. Leopoldo, o garoto do capítulo “Rastros de um caracol”), são plenamente ativas,
enquanto as mulheres representam a parte passiva.
AMG Atravessa este livro toda
uma herança da história feminina, na opressão e na astúcia que se lhe juntou. Ou
não?
FM Há bem menos sinais da astúcia
do que da opressão, eu diria. Os capítulos que abrem (“Sombras raptadas”) e encerram
(“Modelos vivos”) o livro reúnem as mesmas personagens bíblicas: Ester, Madalena,
Maria, Marta, Raquel, Rute e Sara – isto dá uma falsa ideia de circularidade, intencional,
onde embaralho os conceitos de opressão e astúcia, como sugeres. Peguemos um caso,
o de Madalena. Na primeira parte a personagem é demasiado ingênua ao mostrar-se
por inteiro – a certo momento indaga a Deus: “O que fui, senão tua prisioneira,
bastarda e incestuosa, crente pusilânime de que o prazer reanima a fé?” Ela retorna
na parte final com uma grande voltagem de astúcia, confundindo-se no poema duas
vozes femininas, ou seja, quem é a verdadeira Madalena que ressurge em “Flagrantes
da fé” – a que se assemelha à personagem histórica Erzsébet Báthory, a condessa
sangrenta tão bem retratada por Alejandra Pizarnik, ou a anônima esposa de Gustavo,
que narra a história e deixa escapar que há mais ênfase no olhar de seu marido quando
ela o faz cativo? Acho que essencialmente atravessa o livro o componente opressivo,
através do qual a astúcia se prepara para o momento seguinte, em que é sugerida
como uma decorrência, sem que se faça tão presente quanto a opressão.
AMG Erzsébet Báthory que Valentine
Penrose, tão acarinhada pelos surrealistas, tratou de forma esplendorosa no seu
livro dedicado à condessa sanguinária, espécie de Gilles de Rais no feminino… De
facto, Estudos de Pele tem esse lado do
romance negro, essa luminosidade terrífica com aroma a açafrão húmido e a sangue.
Ambos tratam o mal com cintilância…
FM A própria Alejandra Pizarnik
escreveu seu belíssimo La condesa sangrienta a partir do livro de Valentine
Penrose, claro. E tocas aqui em algo que não se percebeu ainda na leitura do livro,
sua intimidade com o romance negro, o entrelaçamento entre erótico, místico, criminal,
recursos sombrios, as cartas de prisão, a crônica policial descrevendo cenas e estilos
de crime, feitiçarias, raptos, confissões, tudo isto que se encontra também em Sade,
cuja leitura na adolescência foi fundamental para mim.
AMG Detecta-se, talvez por isso, um erotismo poderoso em Estudos de Pele, como, aliás, na sua restante
obra: “Extinta a vida dos sentidos, nada mais nos resta no espírito” como refere
Aquinauta que cita no seu Alma em Chamas?
FM Toda escrita é resvaladiça.
Nada faz sentido além do escorregadio. O homem está sempre a fugir de si, e há algo
de erótico neste jogo de máscaras. Mas o efeito do crime tem inocentado inúmeros
assassinos. O erotismo em Estudos de Pele é utilizado de várias maneiras,
incluindo a lascívia, um tipo discreto de suborno, o encantamento mágico. Evidente
que já em Alma em Chamas Aquinauta compreendia que o sentido extrapola o
juízo e o objetivo. Daí que o aproximes tão bem de uma erótica. Está perfeita a
tua leitura. Mas recordemos que Aquinauta não se referia a um sentido encontrado,
mas antes a um sentido buscado. Eis o que somos, inclusive eroticamente: aquilo
que buscamos.
AMG Diria que somos mais aquilo
que desejamos do que o que buscamos. Não é esta uma civilização do desejo?
FM Em uma sociedade pautada
pela conquista, a concorrência, a ganância etc., não se pode falar em desejo. O
próprio termo civilização já não tem mais cabida nas sociedades contemporâneas,
mais afeitas à barbárie. A rigor, nem seria correto falar em busca, porque somos
induzidos a um sistema de rivalidades.
AMG Há excesso de realidade, de razoabilidade. O poeta procura-se,
por isso, fora de si?
FM A crônica policial é o nosso
livro sagrado. Se fôssemos hoje tratar de um Novo Testamento ele seria formado
por uma recolha de nossa crônica policial. Vivemos em uma sociedade criminal, recheada
de seqüestros, subornos, falsos depoimentos, prevaricações, terrorismo, e crimes
passionais – sim, ainda se mata por essa falsa ideia de amor. Podemos chamar a isto
de excesso de realidade? Os velhos monstros da razão, sim.
AMG E quando o poeta se procura,
fá-lo dentro de outras vozes como as deste livro recheado de intertextualidades
(da Bíblia à crónica policial)?
FM A intertextualidade, essa,
não me interessa como um recurso da modernidade, um exercício de afetação intelectual,
mas sim como uma afirmação de diálogo, da busca de cumplicidade com a voz que me
é alheia, mas que procuro incorporar não propriamente ao meu discurso, mas antes
à minha vida, que é – aceitem ou não – a de todos. Jogo de tal forma com este aspecto
da intertextualidade que chego a criar uma personagem fictícia apenas para citá-la.
A citação não é apenas transcrição ou intimação judicial. Trata-se também de uma
confissão, a de que não me quero sozinho no mundo. Pensada como uma transgressão
ou mero recurso técnico, a citação reflete o caráter, como qualquer outra atitude.
AMG Então como relaciona autobiografia
com ficção?
FM Como um recurso para pôr
em xeque a vida do leitor, que é invariavelmente um prolongamento da escrita. A
ficção como um cadinho de realidades e vice-versa. Bem sei que tudo isto se tornou
complexo porque a ficção romanesca já de muito foi atropelada pela voracidade da
mídia em forjar realidades. Neste caso, o autobiográfico vem à tona como um resgate
da essência do ser, embora também possa ser apenas um ardil a mais para a anulação
desta mesma essência. Isto requer atenção maior da parte do leitor e responsabilidade
ainda maior da parte do escritor.
AMG A escrita como prolongamento
de um Eu, ou a vida como prolongamento da escrita? Que vem antes, primeiro?
FM A dúvida impera sempre, a
inquietude, o desconforto, a curiosidade, estes são os princípios motores dessa
complexa relação entre vida e escrita. A rigor nenhuma das duas personagens se sente
menos protagonista que o outro. Tratássemos de um filme – e de certa forma não passa
disto – nenhum dos dois ia querer o papel de bandido.
AMG É seu um discurso das origens e da origem do discurso que se
materializa numa poética da decifração, à semelhança do seu “pai” Blake?
FM Tradução, premeditação,
compreensão, leitura – tudo isto é decifrar as origens. Não faço a menor ideia do
que pode motivar as pessoas a escrever nem quero abordar aquela ideia do sujeito
que se sente feliz sendo um artista somente quando essa condição coincide com a
glória… A toda hora, nos empanturramos de experiências, o encontro casual na rua,
um filme, o som de algum objeto que nos remete a uma lembrança, uma frustração,
tudo. Para mim, essas sensações todas formam uma grande malha de conexão com o que
sou.
AMG Vê-se, então, como?
FM A resposta está sempre na
pergunta, naquilo que se indaga. Vejo a mim de muitas maneiras, mas isto se passa
com toda a gente. Há a existência comum, vulgar, trivial, cuja origem compartilhamos
inconscientemente. William Blake tinha esta percepção, embora acentuadamente sob
um aspecto místico. Não foi a minha primeira leitura, mas sim o primeiro impacte
dentro deste âmbito de uma polifonia de vozes. Temos que provar do outro para tocar
o que somos. Tenho que me misturar ao mundo para identificar-me. Não procuro uma
origem comum, mas sim me inteirar do que seja Floriano Martins o suficiente para
garantir um diálogo honesto com o outro.
AMG Não deixa de existir um trabalho de colagem em Estudos de Pele, que curiosamente, se alia
a uma outra faceta sua, a de artista plástico. Como se fundem palavra e imagem?
FM A exemplo do que se passou
com Alma em Chamas (1998), Estudos de Pele teria na capa uma colagem
minha, que dava continuidade a um entrelaçamento entre gêneros e técnicas, o que
acabou não sendo possível por falta de sensibilidade da editora. Um raro aspecto
negativo. O livro está escrito, e isto importa além de sua publicação. Toda a minha
geração cresceu sobre o influxo do cinema. E cinema é essencialmente colagem. O
cinema põe em xeque uma arte purista, no sentido dela originar-se de uma só matéria.
Evidente que pode seguir sendo realizada por alguém em isolado, mas a ideia de fonte,
as origens, isto o cinema ajudou a questionar tanto quanto a máxima de Lautréamont
de que a poesia deve ser feita por todos. E isto só funciona se cada um de nós fizer
de tudo. Se perdermos a ideia estanque das propriedades sem comunicação entre si.
AMG As suas colagens são, de
alguma, forma diarísticas, espécie de anotações, memórias, teatro de imagens? São
poemas?
FM Sim. São essencialmente
poemas, um tipo de caligrama que já não se limita ao arranjo tipográfico. A imagem
continua sendo uma representação da escrita. Vivemos em uma sociedade esmagada pela
imagem, mas em grande parte essa condição opressiva vem de nossa relação mal digerida
com a escrita. A rigor, somos sufocados pela ignorância. Quanto à referência às
anotações, é tudo o que fazemos, por mais que esteticamente estabelecido como arte,
tudo não passa de anotação.
AMG Há um lado visceral e aparentemente
torrencial na sua escrita poética, aliado a um fulgor ensaístico. Ligam-se, portanto,
imaginação transformadora, loucura e razão?
FM Entendeste bem a questão,
o que prova a menção ao “aparentemente torrencial”. Sei dos riscos de se confundir
a intensidade de um discurso com sua entoação verborrágica. Muito do que se tem
hoje alardeado como pós-moderno ou neobarroco não passa disto. Não é só a imaginação
que é transformadora; também o são a loucura e a razão. E todas podem ser apenas
deformadoras.
AMG No fundo, vive dentro dos
propósitos da acção surrealista, recusando o naturalismo e a expressão unicamente
interpretativa do real?
FM Breton dizia que os naturalistas
eram demasiado otimistas. Eu me considero um pessimista produtivo, mas tenho certa
rejeição a essa terminologia que resulta ser excludente. De um lado ou de outro.
Breton propunha um risco tão intenso, que não dava para deixar de fora quem não
o atendesse em sua verticalidade. Nem ele próprio o fez, e o princípio era mesmo
outro. É inaceitável a forma grosseira com que se tem buscado reproduzir o real.
É um tipo falseado de naturalismo, hoje orquestrado por uma indústria que o anula
justamente na maneira como o evidencia.
AMG De alguma forma há um lugar
da infância que assalta os seus textos?
FM Nunca estamos longe da infância.
Há quem prefira dizer de outra maneira: jamais nos livramos da infância. A psicanálise
adora esta nossa má compreensão do assunto. Há todo um capítulo em Estudos de
Pele, “Rastros de um caracol”, em que se tem a presença de um garoto às voltas
com o que lhe foi determinante para o resto da vida. Mas a todo instante as personagens
deste livro estão voltando à infância.
AMG Ou seja, é o mesmo livro
que tem vindo a escrever, igualmente oriundo desse lugar do menino, sempre aliando
drama e lirismo?
FM Sempre estamos neste embate
interminável com nossos fantasmas. Há autores em que a variedade estilística denuncia,
mais do que uma voracidade, certa instabilidade emocional. Mas há também o risco
de retórica, diluição, nesse repetir-se à exaustão. Interessa-me sobremaneira expressar
conjuntamente drama e lirismo porque esta é a nossa existência, não extraímos de
nós um ouro puro, mas sim uma pedra mestiça que nos devolve à vida justamente pela
mistura.
AMG “Tudo que somos está fora
de seu lugar,/ festim de simulações,/ sistema sem princípio”? Por isso escreve?
FM É um conjunto de ações e
reações, não simplifiquemos. Por mais que eu tente esclarecer o motivo por que escrevo,
haverá sempre algo em mim que escreve por outra razão. Apenas escrevo.
AMG E onde persiste o amor,
como questiona um dos seus poemas?
FM Em toda parte, é um dos
mais obstinados e crédulos dos sentimentos. Tem resistido a tudo em toda a história
da humanidade. Em nome da igreja, da política, sobretudo da dúvida. Creio que mais
temos duvidado do amor do que o afirmado. Convertido em veneração, negociação, saudosismo,
andou por todas as partes e atualmente é apenas fílmico, embora a crônica policial
esteja repleta de crimes passionais. Lendo a poesia que se publica hoje é bem possível
algum cronista futuro enunciar que os poetas estavam muito aquém do amor.
AMG Amor, liberdade e poesia
lado a lado na definição do amor de Breton citado no seu prefácio a O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia da
América Latina (2001), que inverte o título da obra de Octavio Paz, La Búsqueda del Comienzo. Trata-se de uma
antologia de poetas acompanhada de um estudo, um historial da prática do Surrealismo
na América de Língua Portuguesa e castelhana, incluindo ainda um conjunto de entrevistas.
Essa busca de que fala mal começou?
FM Este é um livro isolado
se fizermos um mapa editorial brasileiro e buscarmos suas relações com a América
Latina. O abismo entre as duas culturas – se definidas apenas do ponto de vista
idiomático – constitui já um vício histórico, um tipo de droga legalizada. Eu posso
publicar 10 livros iguais a este e nada se altera. O que se passa é que a cultura
brasileira não pode propor diálogo com outra cultura enquanto não existir por si
mesma, e não existirá enquanto não compreender suas raízes e brigar por elas. Não
importa quanta exceção se produza aqui, seguimos colonizáveis. Não nos livramos
de tal estigma.
AMG A presença do Surrealismo
do Brasil (com pouca penetração, no seu entendimento, por causa da tradição positivista)
não só é desconhecida, mas ocultada (e por vezes negada) pela crítica e pelo poder
cultural?
FM É a tal relação de intimidade
que o Surrealismo propunha entre vida e obra. Isto é um inferno para a intelectualidade
brasileira, que jamais viu na criação uma razão de ser. Antes ao menos havia uma
reação por conta do catolicismo aqui imperante, mas hoje é apenas ignorância, repetição
acrítica de um modelo preconceituoso.
AMG Enquanto estudioso do Surrealismo,
tem procurado, de alguma forma, evitar aquilo que chama “falseamento da história”?
FM [risos] Eu tenho cobrado
isto a todo instante, inclusive de mim. A memória é subornável. É mais: é uma grande
cafetina. A história está nas mãos desta Sra. Agora, não nos esqueçamos que a história
tem um relator: o homem.
AMG Considera ter havido negligência
brasileira para com a cultura dos seus vizinhos? E em Portugal, cuja poesia tem
acompanhado de perto, que fizeram da herança surrealista?
FM Lendo as cartas do António
Maria Lisboa se percebe o quanto que ele chamava a atenção para os riscos da ortodoxia.
Este sempre foi o grande dilema da recepção do Surrealismo em outras culturas, evitar
a tentação de ser mais real que o rei. Os dois nomes fundamentais do Surrealismo
em Portugal estão ainda vivos: Mario Cesariny e Cruzeiro Seixas. O desdobramento
proposto por ambos, distinto entre eles, foi bastante construtivo e evidente, o
que surpreende que um estudioso como Perfecto Cuadrado trate do assunto como um
capítulo vencido da história portuguesa.
AMG Molina disse, numa entrevista,
que “nenhum poeta pode deixar de querer o Surrealismo”. Entendida como referência
histórica, e na acepção de um humanismo poético, a afirmação faz sentido, mas não
será excessiva?
FM Mas o que não é excesso
no Surrealismo? Considerando os inúmeros exemplos de uma poesia hispano-americana
que hoje caiu no ardil de um novo formalismo, como é o caso do neobarroco, que faz
esta poesia retroceder aos seus primórdios modernistas – o que equivale, em termos
brasileiros, ao parnasianismo –, eu acho que Molina estava correto ao afirmar aquilo,
pensando não propriamente em uma receita surrealista, mas sim no espírito de liberdade
que permeava o Surrealismo, enfim, que o poeta, qualquer, não seria poeta sem defender
aqueles princípios, que em circunstância alguma se pretendiam escolásticos.
AMG A dimensão política da arte
tem sido motivo de reflexão sua, bem como tem feito uma crítica feroz à poesia que
se tem vindo a praticar no Brasil há algumas décadas. Mais uma vez solitário?
FM É que os poetas acham que
dão em árvore ou que compram joguinhos de construção poética em livrarias. Uma gente
sobrenatural, talvez. Alienados ou cínicos? É irritante o fato de que ninguém se
compromete com nada neste país. Vivemos um estado de letargia da indignação. Engraçado
é que, a todo instante, um tolo se auto-proclama a antena da raça. O poeta não faz
ideia do quanto é cúmplice do crime que nos deforma.
AMG Poeta, ensaísta, tradutor,
editor, jornalista, director com Claudio Willer, da revista Agulha, coordenador do projecto editorial
Banda Hispânica… Qual a faceta que impera
em todas as suas actividades, a do poeta?
FM Nenhuma dúvida. Tudo isto
são decorrências do poeta. Não tenho formação acadêmica. Sou o franco-atirador,
o autodidata. Esta postura se reflete em tudo o que faço, onde a versão oficial
é a primeira a ser posta em questão, mas em momento algum evidenciando o underground
apenas por sua condição marginal.
AMG Como escreveu André Breton,
“a poesia faz-se na cama como o amor”? Ou seja, é nesse estado de “beleza convulsiva”
que se escreve para “salvar” a vida?
FM Eu não diria salvar,
termo já melodramaticamente incorporado por Hollywood. Mas é evidente que a poesia
se faz na cama como o amor. Ela se torna presente em nós não apenas no verso, mas
na maneira como nos identificamos com cada coisa em nossa vida, uma canção, aquela
imagem de repente referida de uma exposição, o amor, caminhar pela rua com um amigo,
um sonho, saudade, esta entrevista… Onde a intensidade do que fazes? Brincando com
os filhos, pesquisando sobre qualquer tema, abrindo um vinho, recordando a cena marcante
de um filme… Por onde a vida se torna convulsiva? A poesia não responde. A poesia
é a grande fonte de inquietudes. Trate de viver, não de vivê-la. Ninguém consegue
viver a poesia. Mas que delícia que é cada um tratando de viver a si mesmo…
[2005]
[Entrevista concedida a Ana Marques Gastão.
Originalmente publicada no portal Cronópios, São Paulo, 19/04/2005.
Integra o livro O hábito do abismo (Entrevistas com Floriano Martins),
de Márcio Simões (ARC Edições: Fortaleza, 2013).]
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